Jorge Trabulo Marques - Jornalista
"Porque a Terra é Mãe Sagrada
E o Mar esposo Bendito,
Geraram tudo do nada
Por ordem do Infinito.
A Terra abraça o Mar,
O Mar beija a sua areia;
E neste Santo Amar,
E neste Santo Amar",
Nestes dias de vida monástica forçada, mas de muita angústia e incerteza , ao contrário de quem livremente tem optado pelo recolhimento na clausura conventual, em que, a aldeia global, parece cada vez mais reduzida ao mesmo umbigo e sujeita aos mesmos dramas, de inquietação e pânico, por via da epidemia conhecida, recordo-lhe aqui o corajoso exemplo do Sr. João Augusto Ferreira, uma figura muito popular, em sua vida, que deixou imensas saudades aos seus e na sua aldeia mas também a quem teve o prazer de o conhecer e eu tive essa oportunidade, numa entrevista que lhe fiz para o mensário ÉCÔA, em 1998 - Tinha então 92 anos e ainda fazia a sua vida normal, até partindo amêndoa - Cego, desde criança mas nem assim se deixou vencer por essa tremenda fatalidade - Confessando-me, então:


MESMO QUE OS SONHOS NUNCA TENHAM CONHECIDO A COR – É POSSÍVEL SER FELIZ - Transcrição integral da entrevista publicada, em Abril, 1998
Diz o poeta que “O Sonho Comanda a Vida”. Porém, que dizer dos que sonham sem nunca a poder ver?
Convenhamos, no entanto, que, um dos maiores privilégios que foi dado ao ser humano, é a faculdade de poder ver o mundo que o rodeia: de poder contemplar um nascer ou um pôr do sol; de olhar o azul do céu, o firmamento numa noite de luar ou numa noite estrelada. Enfim, de poder admirar, em toda a sua plenitude, todas as maravilhas que a Natureza, que o Criador concedeu ao Homem.
Por isso, Oh Deus! Bem-aventurados os que, não vendo, até andam e trabalham - Mas, sobretudo, vivem a paz e a alegria nas trevas que Deus lhe deu.
Tal é o exemplo que nos transmitiu o nosso concidadão, e também prezado colaborador do "Ecoa", João Augusto Ferreira, e do qual aqui trazemos alguns traços da sua vida.
“Nunca Sonhei a ver” - E na sua amada aldeia, tinha tanta maravilha para ver!
Tem 92 anos, e se não é hoje a figura mais típica de Castelo Melhor, é seguramente ali a mais estimada e admirada ..
Não apenas pelo facto de ser cego quase à nascença - mas por ser um homem que ao longo da sua vida, e apesar dessa enorme insuficiência física, soube superar admiravelmente o seu infortúnio.
Contudo, e tal como se poderá depreender, para que tudo isso fosse possível, só graças a um inaudito esforço e a uma imensa força de vontade.

Primeiro, estudando o próprio braille - o que fez logo em rapaz, na cidade do Porto. Pois cedo compreendeu que a leitura e a escrita eram para si as melhores armas para escapar à completa escuridão ou ao mar de trevas para onde o destino o havia lançado. Depois, então sim, certo de que estava já preparado, regressa à sua aldeia e, sem desânimos ou temores, toca de lançar desafios ao futuro.
Assim, em 1926, e após ter conseguido poupar algum dinheiro como sacristão, estabelece-se com uma pequena loja de tabaco. Segundo diz, contra a vontade de sua mãe, a qual pensava - consciente da cegueira de seu filho - que ele iria ficar sem o dinheiro e sem o tabaco.

De tal modo, que, no ano seguinte, já não vende cigarros, também estende a actividade ao ramo da mercearia. Depois, ao completar o segundo ano da sua experiência comercial, passa também a vender bijutarias e vinho. E, com tal sucesso, que não tarda que transforme a sua pequena loja "numa espécie de supermercado" do seu tempo, conforme hoje nos recorda. E onde não falta nada: desde a onça de tabaco, o copito ou quartilho de vinho, às peças de cotim e de riscado ou outro tecido, em voga, ao arroz, ao açúcar amarelo, aos rebuçados avulsos que tanto deliciavam as crianças, aos aparos para as canetas de tinteiro, às lousas e cadernos escolares, ou até ao petróleo para alimentar os candeeiros e- candeias nos lares, já que a electricidade, então, ainda era um sonho distante.
Porém, se o futuro é uma incógnita, o passado aí está para dele se lembrar ou se recolherem os ensinamentos ou exemplos que se quiserem. E, por conseguinte, recuando no tempo, uns falarão dele com gosto e até com alguma nostalgia, outros, pelo contrário, o que tenderão é esquecê-lo das suas agruras.
Pois, e retornando ainda alguns traços da sua vida de comerciante, contou-nos que, naqueles distantes anos 30, e até por outras décadas mais tarde, o facto de se ter uma loja, não significava que a mercadoria lhe fosse ter directamente à porta, tal como agora acontece com os habituais distribuidores. Nada disso: tinha que a ir buscar num macho à Estação' de Comboio de Castelo Melhor, lá ao fundo das íngremes vertentes do Rio Douro, e, muitas as vezes, indo e regressando sozinho: aliás, tal como, de resto passaria a deslocar-se a uns terrenos que entretanto comprara, graças aos magros mas bem geridos proventos do seu negócio.
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O seu filho, o Procópio, o 2º da direita |
Desse modo, se pode concluir que, apesar das graves limitações da sua deficiência visual, o Sr. João Augusto, não era, nem nunca foi, um vencido da vida. Antes, o homem que, embora vivendo mergulhado nas trevas, não fizera delas o caminho do impossível. Sim, desde pequenino que aprendeu a situar-se na débil mas penúmbrea fronteira que separa esses dois mundo paralelos – o da escuridão e o da luz. Ou antes, a movimentar-se, a não ser seu perpétuo prisioneiro. E, por isso, se alguém o quiser ouvir falar da sua vida, ele de facto tem muito para contar. Não apenas das histórias que atentamente aprendeu por detrás do seu balcão, como também daqueles seus belos tempos, em plena flor da idade, quando os amigos o levavam até aos bailes e às testas, tanto na sua aldeia, como Almendra, às Chãs, a Foz Côa, ou a outras localidades das redondezas, visto ser um excelente animador como acordeonista e, por conseguinte, dada a popularidade granjeada, a sua presença se ter tornado quase como o convidado de honra obrigatório.

Mas também o espantoso exemplo de um homem que, apesar de não poder descobrir as cores do arco-íris, o esplendor da natureza, de ver a luz do sol (e nem tão pouco de urna réstia se lembrar), mesmo assim, não se rende ao seu infortúnio, a essa tremenda fatalidade, e vive a vida e procura alcançar dela aquilo que, certamente, muitos que vêem com os dois olho que Deus lhe deu, não conseguem ou não logram fazer
“Por isso, gosto de viver!” – acrescentou.


E estamos certos que assim vai viver o resto da sua vida. E porque não a continuar a sonhar?... Talvez apenas com uma contrariedade – que, aliás, o persegue desde pequenino, altura em que cegou definitivamente – é que nunca sonhei a ver. Nunca sonhei a ver qualquer coisa!”
Aqui lhe reproduzimos alguns dos seus versos, um conjunto de 15 quadras, escritas na sua velha máquina Remington, subordinadas ao tema - Terra e Mar - Ainda inéditas, pois confiou-nos o original., que não chegámos a publicar no ECÔA, entretanto extinto.
1 9
2 10
4 12


E estamos certos que assim vai viver o resto da sua vida. E porque não a continuar a sonhar?... Talvez apenas com uma contrariedade – que, aliás, o persegue desde pequenino, altura em que cegou definitivamente – é que nunca sonhei a ver. Nunca sonhei a ver qualquer coisa!”

Primeira parte - Terra e Mar Segunda parte - Mar e Terra
1 9
Porque a Terra é Mãe Sagrada O Mar, é Pai Poderoso,
E o Mar esposo Bendito, A Terra, Mãe extremosa;
Geraram tudo do nada O Mar é mais furioso,
Por ordem do Infinito. A Terra, mais carinhosa!
2 10
A Terra abraça o Mar, No Mar se pratica a pesca,
O Mar beija a sua areia; Aonde há peixe a granel;
E neste Santo Amar, Na Terra em sua floresta,
E neste Santo Amar, Na Terra em sua floresta,
Ambos dançam em cadeia. Há caça, flores e mel
3 11
A Lua com o seu luar, No Mar, se cria a baleia,
Entra na dança constante; Na Terra, o elefante;
Oferecendo à Terra e Mar, Se no mar canta a sereia,
Um brilho de diamante. Na terra há muito quem cante.
4 12
As estrelas aos milhares, Há no Mar, o monstro orca,
Bailando na sua lei, Na Terra, o monstro serpente;
Ocupam os seus lugares, Tem o Mar a mansa foca,
Em volta do Astro-Rei. A Terra, o boi paciente.
5 13
O Sol que tudo domina, Há no Mar, grandes navios,
O Sol que tudo domina, Há no Mar, grandes navios,
Tem o seu poder fecundo; Na Terra, há Monumentos;
Com a sua luz ilumina, No Mar terminam os rios,
Tudo, o que gira no mundo. Na Terra, acalmam os ventos.
6 14
6 14
Assim, nesta contradança, Pelo Mar, se espalham as ilhas,
No Salão Universal, Na Terra, repousam lagos;
Nada pára nada cansa, Se o Mar as tem como filhas,
Rodando tudo afinal A Terra, lhes faz afagos.
7 15
7 15
Quem me dera, Universo! Ao Mar até aos confins,
Ser um poeta afamado!... Deus, Abençoa afinal;
Para te contar em verso, A Terra com seus jardins,
Como ninguém ter contado! Dá-lhes a Bênção Paternal.
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Aceitai-me, Terra e Mar!
Como poeta mesquinho!
Quero-vos sempre cantar,
Como humilde passarinho!
João Augusto Ferreira - De Castelo Melhor
Castelo Melhor, tem no seu termo, na margem direita do Rio Côa, um dos famosos núcleos de gravuras rupestres do período neolítico, no sítio da Penascosa – Consultando os elementos disponíveis do site da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, o leitor poderá encontrar desenvolvida informação história, do qual tomamos a liberdade de extrair alguns elementos:
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