Algures no Golfo da Guiné, 20 de Novembro de 1975 Há 44 anos

De facto, tenho concluído
que esta vida errante, não é nada boa.Terei que viver uma vida mais tranquila e
menos sobressaltada. Mas como?!...O que é que eu irei fazer quando chegar a
terra?!..Como irei ser recebido e que será depois a minha vida?!... .Estive
quase 13 anos em São Tomé. Tudo quanto ganhei foi gasto nos meus caprichos
aventureiros. Não trago um centavo comigo. De resto, eu já estou habituado a
uma certa forma de vida incerta e cheia de dificuldades e vicissitudes. Parti
para São Tomé, com a idade de 18 anos.

A princípio fui para ali trabalhar numa roça mas
comecei por não me adaptar, lá muito bem. O administrador da roça queria que eu
tratasse os trabalhadores negros por tu. Dizia ele que era "a
maneira de guardarem respeito ao branco" e de eles trabalharem".
Evidentemente que não me adaptei... E o dinheiro que me pagavam ao fim do mês,
comparado com as promessas que me fizeram, depois de feitos os descontos
para alimentação e pagamento da viagem, não me ficava quase
nada. Claro que não fui para São Tomé com o objetivo de fazer
fortuna, mas esperava que ao menos me atribuíssem uma compensação humanamente
digna. E então os pobres trabalhadores ?!... Autênticos escravos!..

Por força dessa minha inadaptação, o meu passa-tempo
predileto, era então o mar...Praticamente, desde que ali desembarquei, vi nele
uma espécie de refúgio. Qualquer coisa onde me sentia livre de todos os
aborrecimentos. Um horizonte sempre aberto e imenso, que me abria as portas a
uma incontível ânsia de ir mais além na procura de uma felicidade
imaginária que naquele meio ambiente eu não encontrava.


Por isso, sempre que
podia, frequentava as belas praias de São Tomé. Comecei por manter estreitos
contactos com os pescadores, homens corajosos e simpáticos. Aprendi a equilibrar-me nas suas
canoas, começando primeiro por dar pequenos passeios de praia em praia., até
que por fim veio a paixão - E, a
par disso, também outras interrogações: perguntava-lhes se já tinham ido de
canoa à Ilha do Príncipe, respondiam-me que "só canoa de gente de
feitiço" é que o tornado a levava ao Príncipe ou ao Gabão; "outra,
vem gandú (tubarão), vira a canoa e come-lhe a perna" . Achava que era uma
superstição, sem fundamento e havia que desfazer esse fantasma: concluía
que, se o tornado arrastava para lá a canoa, involuntariamente, também lá se
podia ir por vontade própria. Face a essas lucubrações, comecei a pensar que,
um dia, eu devia fazer-lhe essa demonstração - A par disso, questionava-me
também sobre o seu passado longínquo: se não teria sido através das canoas que
os seus ancestrais não teriam vindo do continente africano.

Não tenho meios de
comunicar com ninguém. Disponho apenas da orientação de duas bússolas: uma que
trago no pulso, como se fosse o meu relógio, outra fixada junto à ponte
da proa. Se morrer afogado no mar eu tenho a certeza que ninguém vai saber o que me aconteceu ou chorar
nesse momento a minha falta. Mesmo a família, da qual tenho estado
bastante ausente. A minha mãe faleceu, dois anos depois de eu ter chegado a São
Tomé . Sei que o meu pai, os meus dois irmãos e a minha irmã me não
esquecem. Mas a vida deles e de todos os meu familiares, é como se fizesse
parte de outro mundo...Quem é que poderá imaginar onde eu agora estou e a fome
que me tortura e a solidão em que me encontro? Amo a natureza e vejo no
mar a mais íntima forma da sua aproximação. Cada vez mais me sinto
atraído pelo seu misterioso canto. O isolamento é uma forma de o encontrar, de
mergulhar na sua indescritível magia. Sim, fisicamente, sou para aqui um
farrapo humano. Uma criatura desprezível, as forças vão-me
faltando. Sem nada com que matar a fome. No entanto, talvez por isso mesmo,
mais purificado, mais sensível e fortalecido espiritualmente. Sim, porque o mar
não é só esta imensa vastidão. O mar é vida. Umas vezes meigo, suave, dócil,
belo e acariciador; outras vezes, cruel, impiedoso, impaciente e infernal
Agora, nesta manhã
acinzentada, não será bom nem mau, nem triste nem alegre: ondula, freme,
move-se numa turbulência que nem me agrada nem me desagrada. Não me encanta nem
desencanta.. É realmente terrível o seu poder. Não é egocêntrico. Não vive
apenas para dentro dele. Transmite e afeta todo o meu estado de alma. É pena
vê-lo agora encrespado, tão sisudo e não tão comunicativo como costuma ser.
Mesmo assim, faz-me sentir próximo dele. Embora, com outras palavras, é o que
vou já transmitir para o meu gravador - O fiel registo dos meus
sentimentos, que guardo como se fosse o cálice de um sacrário no meu baú de
plástico, um velho contendor do lixo, que o meu amigo Germano Castela, fez o
favor de me dispensar.
Diário de Bordo 1 (continuação) Esta manhã aparece com o mar
relativamente cavado, com uma certa carneirada. O céu nublado. Não
totalmente mas com nuvens escuras que ameaçam chuva. ..Um pormenor curioso a
que eu não fiz referência: na noite de ontem, eu tive oportunidade de observar
um eclipse total da lua.
A noite em que observei um eclipse total da Lua - Calculo que por volta da meia-noite - - O céu e o mar ficaram mais negros que nem na mais negra noite de tempestade - Não se enxergava um palmo à frente do meus olhos - Nem sequer os contornos da piroga - Durante quase hora e meia foi como se o mundo não existisse. O mar e o céu pareciam unidos nas mesmas sombras e pela mesma escuríssima cortina - Senti uma profunda solidão! - Tanto mais que havia mais nuvens que abertas, que por sua vez iam também eclipsando as estrelas e tornando-as ainda mais longínquas - Além de que o mar permaneceu toda a noite muito cavado. Mas não poderei dizer que fosse uma noite muito anormal - Pior teria sido se chovesse. Direi que a observação daquele Eclipse lunar foi apenas um episódio em mais uma longa noite de vigília e de reflexões na minha vida.
18/Novembro/1975fonte de dados | Ocorre
um eclipse total da Lua, sendo observado em Fortaleza pelo Observatório
Herschel Einstein, cio astrônomo Cláudio Pamplona.Portal da História do Ceará |
A noite em que observei um eclipse total da Lua - Calculo que por volta da meia-noite - - O céu e o mar ficaram mais negros que nem na mais negra noite de tempestade - Não se enxergava um palmo à frente do meus olhos - Nem sequer os contornos da piroga - Durante quase hora e meia foi como se o mundo não existisse. O mar e o céu pareciam unidos nas mesmas sombras e pela mesma escuríssima cortina - Senti uma profunda solidão! - Tanto mais que havia mais nuvens que abertas, que por sua vez iam também eclipsando as estrelas e tornando-as ainda mais longínquas - Além de que o mar permaneceu toda a noite muito cavado. Mas não poderei dizer que fosse uma noite muito anormal - Pior teria sido se chovesse. Direi que a observação daquele Eclipse lunar foi apenas um episódio em mais uma longa noite de vigília e de reflexões na minha vida.
Diário de Bordo Devo estar
mais próximo do continente africano. Já parece impossível, não é ?!...Depois de
tantos dias de ter largado e não ter atingido a costa africana!... Claro
que as trovoadas têm-me feito andar para aqui às aranhas de um lado para
o outro!.... Vou pôr a vela, já. A ver se atinjo, hoje, finalmente,
terra!
Quando o mar
está calmo a canoa não tem tanta velocidade. É natural que a noite passada
tenha andado bastante.... devido à força que as vagas lhe imprimiram.
Diário de Bordo 2- É quase meio-dia e ainda não consegui
navegar nada! Já por três vezes tentei pôr a vela.... e não há vento!.. Quer
dizer, aqui, quando há trovoadas há vento demais e é impossível navegar!
Quando não há trovoadas, há calmarias e o mar é um lago!... Agora o mar não dá
qualquer hipótese, visto não haver força de vento suficiente para impulsionar a
vela. É irritante!...Sinceramente!... Esfomeado que estou!...

Diário de Bordo 3 Agora,
neste preciso momento, talvez quatro horas da tarde, apareceu um enorme! um
gigantesco tubarão! Mesmo gigantesco!! Estava deitado no fundo da canoa.... e
senti roçar!... Depois vi logo que era um tubarão! Pois investiu várias vezes
contra a canoa!... À proa! À popa! Até que eu agarrei no machim e
consegui dar-lhe umas machinadas na cabeça! E então fugiu!...Não sei onde
é que ele agora se encontra! Mas, efetivamente, é um monstro!!.. Uma coisa
pavorosa!... Um monstro autêntico!... A acompanhá-lo havia uma série de
peixinhos!...
Diário de Bordo 4- Acabei
agora de pescar um peixe à mão!...Andava aqui... Consegui!...O gajo,
mesmo cortado, estava a escapar-se! Era o que faltava!... Claro que estou a
comê-lo cru!... Sabe-me perfeitamente bem!...
Diário de Bordo 5 - Estou
satisfeito!...Já comi o peixe cru e soube-me bem!...Estou a ver
perfeitamente contornos da costa africana, que ainda é um bocado
distante....
Finalmente
consegui pôr a vela e parece que há um ventozinho que me vai tocar para
lá...Veremos quando...
.
Diário de Bordo 7 É
pura e simplesmente irritante!... Não há vento absolutamente nenhum!... Quer
dizer, não posso velejar e tenho a costa, tão próxima! ...É realmente muito
aborrecido!
Diário de Bordo 8.
Já se pôs o sol do 31º dia. O dia esteve praticamente de calmaria!... Ligeiras
brisas... que não deram para navegar...
Voltei apanhar uma ave. Pousaram duas: uma à proa e
outra à popa. A outra fugiu!... Tenho-a aqui para a comer amanhã....
A costa africana. sei que não fica distante... É
natural que esta noite tudo se modifique... Há uma formação de nuvens muito
escuras a sueste, que devem trazer chuva, com certeza...Portanto, é isto apenas
que tenho agora a dizer.. E que amanhã outras novidades melhores possam surgi
Nenhum comentário:
Postar um comentário