Algures no Golfo da Guiné, 19 de Novembro de 1975 - HÁ 44 ANOS
Diário de Bordo 11 - Não comi
nada. Quer dizer, limitei-me a comer uma das barbatanas do tubarão
que tenho aí, como troféus. Tentei pescar e não consegui pescar,
absolutamente nada. Hoje, digamos, é um jejum limitado a água e alguns
comprimidos, umas vitaminas. De resto, não pude arranjar mais nada, visto ter
estado ocupado, quase todo o dia, com o remo, para dar a direção à canoa.
Foto tirada com um dos braços - Espelhando a imensa angústia e a incerteza. |
Além das tempestades, mais o labirinto de correntes |
Se me tem acompanhado, não estranhe que as observações, no meu diário, se repitam – O que não se repetia da mesma maneira., era a fome, a sede e a fraqueza, que recrudesciam e cada vez mais me atormentavam e debilitavam - Mas havia que acreditar! Nunca se pode perder a esperança. Há que se auto encorajar, mesmo que seja para se iludir e enganar - O próprio instinto de sobrevivência, encarrega-se de lançar esse apelo
ONDE EU FUI PARAR, DEUS MEU!....À ZONA MAIS TURBULENTA DO GOLFO QUE O ÉPICO DOS LUSÍADAS IMORTALIZOU
"Sempre enfim
para o Austro a aguda proa
No grandíssimo
gólfão nos metemos,
Deixando a serra
aspérrima Leoa,
Co'o cabo a quem
das Palmas nome demos.
O grande rio, onde
batendo soa
O mar nas praias
notas que ali temos,
Ficou, com a Ilha
ilustre que tomou
O nome dum que o
lado a Deus tocou"
Camões
QUANTOS NAUFRÁGIOS ESTAS ÁGUAS
NÃO TERÃO SACRIFICADO?! - QUANTAS VIDAS NÃO TERÃO ENGOLIDO?!...
NÃO É FÁCIL A UMA CANOA SOLITÁRIA SEM REMOS APROPRIADOS OU BARCO DESGOVERNADO, APROAR A BOM PORTO
NÃO É FÁCIL A UMA CANOA SOLITÁRIA SEM REMOS APROPRIADOS OU BARCO DESGOVERNADO, APROAR A BOM PORTO
Esta imensa vastidão oceânica é atravessada por várias
correntes: predominando o braço da corrente do sul, que se ramifica da
Corrente de Benguela, junto às proximidades da linha do Equador e que dali
conflui para oeste onde toma parte da corrente rotativa do Giro
oceânico; a outra corrente é
a que deriva de um braço da Corrente das Canárias - Mas qualquer delas
tem a sua forte influência: Subcorrente Equatorial;
Corrente de Guiné; Corrente Equatorial Norte; Corrente Contrária
Equatorial Norte; Corrente ao Sul Equatorial; Corrente Contrária ao
Sul Equatorial; a Corrente de Benguela Costeira que se desdobra para oeste
norte, a Benguela Corrente Oceânica. Mais informação em: As
correntes marinhas - Monografias.com****The
Guinea Current*
Acabei por acostar a Bococo - oito dias depois |
A zona assinalada «» foi onde eu
calculo ter andado perdido dezoito dias: umas vezes mais próximo de Bioko
(ex-Fernando Pó), outras da costa camaronesa ou nigeriana - Até finalmente
atingir a costa da maior Ilha da Guiné Equatorial »» - De referir que a
distância do canal entre esta ilha e os Camarões é de 30Km. E o mais
incrível é que, os barcos que passaram perto de mim (pelo menos duas vezes) não
me viram ou ignoraram-me.
Algures no Golfo da
Guiné, 18 de Novembro de 1975 -
Diário de Bordo - 1 Faz esta manhã um mês que me encontro a navegar na minha canoa. Passei uma noite esplêndida. Não dormi, efetivamente... Como acontece, estive várias vezes acordado a observar o tempo... Esteve um belíssimo luar! O mar muito calmo, muito sereno!...Uma noite brilhante, cheia de luar!
Por detrás daqueles recortes horizontais de nuvens, escondiam-se perfis de terra |
De Ano Bom a Bioko - 38 dias |
Passei uma noite muito melhor, que a outra! Esta não choveu!...Na outra, passei a noite alagadíssimo. Se o tempo continuar, como agora está, espero chegar lá hoje. A menos que surja alguma tempestade de tarde
Diário
de Bordo - 2 Há pouco disse ter visto a costa africana mas não é a
costa africana; o que vi foi
a Ilha do Príncipe a sueste. Pareceu-me ter visto ao longe os cumes desta ilha.
De qualquer forma, eu penso que esteja muito próximo...É difícil ver-se de manhã a faixa africana...Aliás, parece que
estou a ver agora para oeste, qualquer coisa parecido a contornos de terra...
Mas tenho um pressentimento que me encontro muito próximo....
Diário de Bordo - 3 São oito e tal da manhã. Estou a
navegar com muitas dificuldades, evidentemente, quer devido ao desequilíbrio da
canoa, quer às vagas. O mar
está agora bastante cavado! Não se pode largar o remo um minuto. Tenho a nítida impressão que devo estar muito
próximo. A água está a ter uma cor esverdeada, o que parece indicar a
proximidade de terra.
Os tubarões martelos continuam a acompanhar-me, não me
largam!... Ainda não comi qualquer coisa esta manhã mas só a ideia de me estar a aproximar de terra me faz a
esquecer a fome. Todavia, a costa africana, continua ainda misteriosa! Volta
haver neblina...Não se vê qualquer contorno.
Navega canoa! Navega, navega!
Navega canoa! Não navegues à toa!
Navega para terra! Navega canoa! navega!
Que eu tenho lá boa gente à minha espera!
Diário
de Bordo - 5 É curioso realmente constatar! Neste momento, chega um
tubarão, daqueles velozes e perigosos! daqueles enormes! E as douradas
imediatamente lhe saltam em cima!...Aliás, como todos os peixinhos que aqui têm
andado, vão junto dele e tentam-no afugentar!... É realmente, para mim, um
pormenor curioso, nesta manhã do 30º dia.
Há ocasiões em que até já não sei se é o perfil da
terra ou alguma aglomeração de nuvens. O mar é um espelho encapelado e
sussurrante de marulhos e redemoinhos. A vela espaneja contra o mastro e produz
um ruído monótono, quebrado pelo baque baque da quilha da canoa a cortar e a
galopar triunfalmente a opacidade esverdeada das águas.
Que Deus me perdoe! Mas a fome martiriza-me e torna-se-me numa
avidez, quase selvagem, impossível de conter. Ainda se fossem muitas as aves,
que pousassem na minha canoa, talvez até nem me importasse tanto, mas geralmente,
apenas pernoitam umas duas ou três.Se calhar
até são as mais doentes e cansadas do bando, que, por incapacidade física,
procuram acolhimento na minha frágil embarcação, como último reduto.
Quando fiz
a viagem para a Nigéria, todas as noites pousavam perto de mim, algumas dezenas
delas. De manhã, quando acordava, até parecia que viajava a bordo de um pombal
ou gaiola de aves. Porque será que agora não pousam tantas?!... De certo,
porque, contrariamente àquela viagem, me está faltando comida
e, elas, com o seu instinto de conservação, porventura ao
aperceberem-se que as suas vidas, ao lado de uma criatura esfomeada, pudessem
correr sério perigo, evitam-me. É capaz de ser por essa razão, sabe-se lá.
Pois, ao fim da t
arde, eu bem as vejo passar por cima de mim, em grandes bandos Se calhar até são as mais doentes e
cansadas do bando, que, por incapacidade física, procuram acolhimento na minha
frágil embarcação, como último reduto.
Diário
de Bordo - 4 E a minha canoa continua a navegar! Singrando
velozmente o mar! As aves cantam! Os peixes acompanham o seu ritmo! Tudo neste
instante se traduz, em alegria, serenidade e paz!
O sol vem quente esta manhã. Ah! quem me dera ser
peixe! Poder nadar! Pescar! Estes belos peixes que aqui andam... Ali, aquela
barracuda que não me
larga!...Ai que tão apetecíveis estão!...Se eu as pudesse pescar...Ah! como tão
saborosas me eram! Mas não posso...Apenas me fazem companhia.
As douradas - sempre muito companheiras e curiosas |
São cerca das 10 horas. Está a fazer já bastante
calor! Há menos vento, e, com certeza, que
daqui a pouco, terei de tirar a vela. O mar é que continua bastante
ondulado... As douradas, não há dúvidas que portam-se como autênticas guardiãs.
Diário de Bordo - 6 Devem ser neste momento duas de tarde.
Continuo a velejar mas com uma certa dificuldade, pois o mar tem bastante
carneirada, está muito agitado! ...Quer dizer, tem uma ondulação bastante
desencontrada. E eu continuo a viver à custa de comprimidos e de água... Pois
ainda não tive oportunidade de pescar; de resto, continuarei a velejar enquanto
puder.
O sol incide com uma força
causticante na minha cabeça, que cubro com uma toalha enrodilhada, mesmo assim,
parece que sufoco. A sede aperta
e vejo-me na necessidade de ter o bidão de plástico, sempre à mão. Apesar de
tudo, tenho bebido moderadamente. É certo que levo inúmeras vezes o copo de
água aos lábios, porém, apenas para os ir molhando com reduzidos goles de cada
vez.
Evidentemente, que se eu fosse a fazer a vontade ao
organismo, eu teria de beber grandes porções da reserva da água das chuvas, mas
não posso abusar, dado que também não tenho nenhuma comida no estômago. Além
disso, mesmo que o encharcasse de água, estou convencido de que nem assim
mataria a sede, porque, quanto mais bebesse, mais vontade teria de beber. Por
isso, embora seja custoso, é conveniente usar alguma moderação.
Diário de Bordo Vêem-se já nítidas silhuetas da
costa de África! Contornos
esbatidos!... E a água está a ficar também
uma cor mais esverdeada, sinónimo de
que não é das grandes profundidades. Portanto, tudo indica que realmente me
estou a aproximar a passos largos da costa africana. Pena é o calor que está a
fazer sentir-se... É realmente, muito intenso! Mas tem que suportar-se com
calma e paciência.
Diário de Bordo - 7 Devem ser nesta altura três da tarde. A costa africana continua cada vez
mais escondida!... Que segredos me aguardará?!.... Realmente, cada vez me
parece mais escondida... Eu sei que estou mais próximo dela!... É curioso...
Guardar-me-á algum segredo?!...
Popa da canoa - Numa tarde de calmaria |
Diário de Bordo - 8 Devem ser neste momento, quatro da
tarde. Sinto-me nitidamente cansado e cheio de fome!... Com uma grande
fraqueza! A costa de África continua oculta, o mar bastante cavado!... Digamos,
que muito perigoso até!....As correntes, estão-me a puxar para norte! E os
ventos para nor-noroeste!.. É difícil realmente velejar nesta situação, mas
estou dando tudo por tudo, a ver se atinjo hoje a costa africana. Mas estou a
ver que ela continua ainda misteriosa...
Imagem
de um desses perigosos tubarões
Diário de Bordo - Hoje tive a presença de um tubarão enorme, daqueles vorazes! E a presença de dois peixes
gigantescos, que não sei identificar.
Apesar de cansado, quase de hora a
hora, vou dizendo umas palavras para o gravador. Se não fosse o velho caixote
de lixo, de plástico, onde já estaria o gravador e as cassetes! Faz-me lembrar
o atleta, que, nas provas de estafeta, passa a mensagem para outro companheiro.
Eu aqui, como não tenho companheiros, sou o único a pensar na minha meta, e,
após um determinado espaço-tempo, a transmitir a mensagem ao meu gravador, que
neste caso funciona como uma espécie de fiscalizador-recetador.
Diário de Bordo - 9 São quase cinco da tarde. Tenho a
convicção de que andei bastante. Talvez represente uns dias à deriva, este
bocado que hoje fiz durante o dia. Mas a verdade é que a costa de África,
continua para mim misteriosa, oculta, escondida numa ténue neblina....Estou
muito cansado... daqui a pouco, vou fazer uma pausa para ver se pesco qualquer coisa... a fim de mitigar a
fome.
Terei que me preparar para mais uma chuvada, que deve
estar para aí aparecer, não tarda, visto o horizonte estar a anunciar chuva...
Parece que não me livro de mais uma chuvada.
É um problema aborrecido, a mudança súbita do tempo.
Agora, pela tardinha, as nuvens negras, acumularam-se a sul e a norte. Estou
praticamente no meio de várias frentes cerradas. Não sei qual delas se irá
precipitar primeiro sobre a zona onde estou. Por cima da minha cabeça, o céu
ainda se mantém puro e limpo. Mas isso não impedirá que daqui a pouco eu esteja
para aqui a ser regado que nem num chuveiro. Não há vento nenhum. Em
contrapartida, o oceano está endiabrado de fúria.
Afinal, daqui a instantes, põe-se o sol e eu sem
atingir ainda a minha ansiada meta. Realmente, a distância, tem-me parecido
curta, mas pelos vistos, não passa de ilusão de ótica.
Diário de Bordo - 10 Já é noite do 30º dia. Choveu, como eu
previra, no fim da tarde! Por acaso, apenas foram alguns reflexos de uma
chuvada que deve ter ocorrido, lá para longe, para sul...Apenas se sente a
ressaca; o mar fortemente agitado, com vagas demasiado fortes!... Veio
realmente dar um certo desequilíbrio à canoa, um mau estar... Há formações de nuvens
negras também para Norte, noroeste... E, para sul, não sei se trarão
chuva...Noutras bandas, vejo que algumas já estão a deitar chuva...Vê-se a
escuridão.... Espero... só peço a Deus que a noite não seja chuvosa...
De dia, ainda que chova, o
tempo nunca é tão aborrecido ou desagradável como numa noite chuvosa e fria. Depois do astro solar
se despedir destas bandas – sempre à mesma hora, ao nascer e ao pôr em qualquer altura do ano - e ir
oferecer a sua luz e o calor para outros quadrantes da terra, sim, logo que os
azuis do céu e do mar, se toldam de penumbras e de sombras, todo o ambiente por
cima de mim e à minha volta, se transforma num verdadeiro pesadelo de
esquecimento e de tristeza.
A
minha canoa – qual madeiro, ora balançando e cabriolando desordenadamente,
sobre a crista das vagas - ora descaindo e rolando vertiginosamente pela
vertente dos extensos montões líquidos por elas formados, até se despenhar nos
abismos que sucessivamente se abrem pela cava das mesmas e de novo se erguer pela
superfície abrupta e escorregadia das suas barreiras, como algo que
desesperadamente se levanta ou tomba na vã tentativa de alcançar os céus, é,
pois, já nesta hora de trevas e de solidão, um pontinho negro, perdido e
ignorado do resto do mundo, vogando sem rumo, nem destino. Sem nada para comer,
a minha vida agora não é mais de que uma torturante forma contemplativa de
sobreviver.
Diário de Bordo 11 - Não comi nada. Quer dizer,
limitei-me a comer uma das
barbatanas do tubarão que tenho aí, como troféus. Tentei pescar e não consegui pescar, absolutamente
nada. Hoje, digamos, é um jejum limitado a água e alguns comprimidos, umas
vitaminas. De resto, não pude arranjar mais nada, visto ter estado ocupado,
quase todo o dia, com o remo, para dar a direção à canoa.
Já voltei a ver recortes da costa africana. Parece-me
que muito mais próximos.
Portanto, espero que, amanhã,
finalmente consiga a minha aproximação. É isso que eu desejo.
Esta tarde falei de que a água tinha uma cor mais
clara, mais verde. De facto, nesta zona que eu ando, entre Fernando Pó e a
Nigéria, as águas não são muito profundas. Por vezes a cor ilude, pois tanto
está de um azul-escuro, como passa a um azul claro. Depende da claridade do
sol. Portanto, eu devo ter sido iludido pela luminosidade solar.... A distância
não é muita... De qualquer forma a cor, só mudará muito próximo de terra. Só as
águas ribeirinhas. costeiras, é
que têm uma cor mais clara.
Está aqui uma
ave ao meu lado... aí a um metro. Vou ver se lhe deito a mão... É um bocado
difícil, porque ela é um bocado esperta...Vamos lá a ver se eu consigo
apanhá-la.
SACRIFICANDO MAIS UMA AVEZINHA - QUE ERA SÓ ESQUELETO - TALVEZ DOENTE E CANSADA
SACRIFICANDO MAIS UMA AVEZINHA - QUE ERA SÓ ESQUELETO - TALVEZ DOENTE E CANSADA
Vinham pousar à proa e à popa |
Este o fogareiro em que assava as aves - Reduzidas a ossos |
Travessia S. Tomé-Nigéria 13 dias |
Diário de Bordo - 12 Tem piada que consegui
apanhar a ave. Tenho-a aqui. Andava com a dar umas voltinhas e ainda apanhei em
pleno voo... Ela está-me a morder, é brava!...Mas vai ser o meu jantar...Vou
aproveitá-la imediatamente... Então!!...Estás chateada?!... Queres fugir?!...É
gordinha, dá um jeitão...
Não havia maneira de pousar. Andava de
um lado para o outro a sobrevoar a canoa e foi preciso deitar-lhe as mãos em
pleno voo. Pelos vistos, estava a adivinhar a
sorte que a esperava. Coitadita!...Já está para ali morta e depenada a um
canto, preparada para o dia de amanhã. Afinal, era magrita, tinha mais penas e
ossos de que carne. Encheu-me todo cheio de piolhos. Pois, estas aves, são
realmente muito piolhosas. Agora, andam-me aqui a incomodar pela barba e pelo
cabelo. Era o que me faltava para me ajudar a passar melhor a noite...
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