37º dia - 26 de Novembro
de 1975 - Há 44 anos - Excecionalmente tenho editado algumas postagens neste meu
site, dado que esta minha aventura tem sido relatada em Odisseias nos Mares, espaço dedicado especialmente à temática santomense, donde parti para a tentativa de
uma travessia oceânica, que bastantes sacrifícios me haveria de trazer,
constituindo-se, porém, como uma experiência de vida que jamais esquecerei, mesmo passados tantos anos .
Fundeado junto a uma praia da região de Bococo, a sul da Ilha de Bioko - Guiné Equatorial - 26 de Novembro de 1975 - Era já noite e não pude acostar. Na manhã seguinte, descobriria, na mesma orla, algures para oeste, um pequeno areal negro onde pude finalmente desembarcar. As horas magníficas que ali passei durante a manhã, naquela pequena enseda luxuriante - qual aspirante a Robinson Crusoe e depois a caminhada pela floresta que me levaria a uma finca de cacau, a forma amistosa como ali fui bem recebido a contrastar com o comportamento desumano das autoridades que, mesmo extremamente debilitado, nesse dia à noite, me levariam para os calabouços de uma esquadra, sob supeita de espionagem, tendo, no dia seguinte, sido conduzido algemado para a mais temível cadeia de África - a tenebrosa Blach Becah - Quer dizer morte. Quando um prisioneiro chega a esta prisão, sua família começa a preparar o caixão.- Os relatos, dessas vicissitudes por que passei, sob o mando de Macias Nguema, não ficam atrás dos dias de incerteza e de angustia vividos ao longo de intermináveis dias e noites na vastidão do Golfo da Guiné Equatorial, mas, para já, veja como foi a minha aproximação a terra, após tão longo e penoso calvário de tormentosos dias e noites de incerteza.

Muito por culpa do comandante do pesqueiro americano, Hornet, que me tendo prometido, em S.Tomé, que me largaria a sul de Ano Bom, na influência da corrente equatorial que me arrastaria para o Brasil - rota que pretendia seguir - me trocou as voltas, quando fundeou a Norte e ao largo daquela ilha: ou fica a bordo ou canoa ao mar - Optei pelo regresso a S.Tomé - E, navegar no Golfo, em plena época das chuvas e dos tornados, numa frágil canoa, era opção quase suicida, de vida ou de morte - Apesar de tudo, quis o destino que, mesmo tendo sido atingido por violenta tempestade, logo na primeira noite, que me causaria a perda de quase todos os apetrechos e víveres, fosse um homem de sorte.
Diário de Bordo - É manhã do 37º dia. Ainda me encontro no mar...Estou partido!...Tenho o estômago metido para dentro. Não tenho nada na barriga... Estou realmente bastante fraco!...Estou mais próximo de terra... mas os ventos não me têm ajudado.

Finalmente, ao princípio da tarde, levantou-se algum vento. Estou a velejar mas com extrema dificuldade, devido à ondulação, que é muito forte. O leme, que lhe adaptei, soltou-se com uma vaga do primeiro tornado - e lá foram também os remos. Por mais esforço que faça, com o remo improvisado, não há maneira de embicar para terra. De volta e meia, a canoa atravessa-se à vaga. Mas lá vou indo, lá vou navegando, com determinação e a graça de Deus
Oh, se pudesse ir a nado!... Mas não posso. Sinto-me muito fraco, cheio de fome, mas não me rendo. Estou confiante de alcançar anda hoje, terra firme, chão seguro!.. A bússola dá-me a leitura de todos os quadrantes, porém, não podendo dispor de meios para calcular a minha posição, fico sem saber onde estou. No entanto, de uma coisa estou certo: a terra está ao alcance dos meus olhos, estou muito próximo!... E tão longe de a poder alcançar, eu já me encontrei!...
Chamou-me atenção um coco, flutuando e a rebolar de um lado para o outro. Dei umas remadas na sua direção. Qual não foi o meu espanto!... Estava sem a amêndoa e com a casca meia partida mas com um peixe lá dentro. Em redor, vários peixes graúdos, nadando em torno do coco, pareciam fazê-lo saltar. Claro que aproveitei a presa, o pequeno peixito para o meter logo inteirinho à boca. De seguida apanhei mais dois cocos inteiros. Um deles descasquei-o imediatamente com o machim e aproveitei para saborear a suculenta amêndoa. O outro guardei-o para mais tarde.
Quando fiz a viagem de S. Tomé à Nigéria, de manhã, ao acordar, a borda da canoa parecia um autêntico pombal. Registei belas imagens: ao regressar a S.Tomé, deixei-as na redação de uma revista, esta entretanto extinguiu-se e perderam-se.
Mais umas remadas, ó Jorge!...Vá lá!.. Tens a terra, ali a quatro ou cinco centenas de metros!... Dobra-te sobre o remo!.. Aperta o cinto e não desistas!... De modo algum, vou desistir... Se não desisti, até agora, como poderia desistir com os perfumes, balsâmicos, vindos da floresta, a revigorarem-me os pulmões e o meu coração?!...Tenho de lá chegar, antes que anoiteça!... Tenho de me embriagar com os aromas e as fragâncias da sua luxuriante verdura!...Vamos!...Coragem!
E lá vou remando, esforçando-me o mais que posso, dando tudo por tudo. Só Deus sabe com que inaudito esforço. Ora tombaleando a bombordo, ora a estibordo. Encurtando, pouco a pouco, a distância que me separa do recorte da íngreme encosta verdejante, que se eleva aos meus olhos. O arvoredo já não é propriamente um emaranhado denso e uniforme, de um verde escuro. Por entre a brenha densa do espesso manto arbóreo, que se ergue desde a orla até perder-se nas névoas de uma elevada montanha, notam-se, de onde em onde, vários matizes coloridos, que vão do amarelo ao vermelho, a contrastar a uniformidade verdejante. Ouço perfeitamente o marulho da rebentação espumosa. Mas ainda não consegui divisar um palmo de areia. 
Entretanto, o sol vai descaindo no ocaso, vai pousando sobre o horizonte, como que despedindo-se de mim através de um rasto luminoso, que se estende à superficie das águas e parece querer envolver-me por um brilho nostálgico, místico, algo tranquilizador e sobrenatural. Será este o prémio do meu esforço, da minha vitória sobre tantas e tão enormes adversidades?!... Sim, creio que posso alimentar essa consoladora esperança. O chão firme, já não é um desejo ardente mas uma certeza que se me abre de forma tão esplendorosa!... Não sei que lugar é este que tenho à minha frente; não faço a menor ideia como vou ser recebido, que riscos ainda me aguardam. Até porque já me apercebi que a costa é abrupta e não vou poder acostar. O crepúsculo, nestes mares, é muito rápido e a noite está já quase a cair sobre mim.
Ainda não parei de remar. Ando para aqui de um lado para o outro a tentar descobrir uma qualquer língua de areia mas é tudo aprumo. A floresta é já uma mancha negra. Ainda bem que o tempo está calmo, quando não era atirado de encontro às rochas. Na viagem que fiz de S. Tomé à Ilha do Príncipe, ao pôr do sol, encontrava-me junto a um promontório. rochoso e escarpado. - Impossibilitado de me aproximar, lá tive que me escapar para o mar para não ser atingido pelo tornado, que estava a formar-se àquela hora no horizonte. Com a costa, ali a dois palmos!... Que noite mais horrível, meu Deus! Mar tumultuoso e negra escuridão, que os relâmpagos iluminavam e me deixavam quase cego.Não há palavras!...
Não tenho a certeza se a floresta é habitada. Pareceu-me ter visto alguns focos de luzes por entre o arvoredo. Mas deve ter sido ilusão minha. Embora, apenas já se distingue uma massa escura, - , sim, agora só se ouvem os sons da floresta, o piar da passarada e o vai e vem das águas, batendo e recuando não se sabe aonde, contudo, os perfumes inebriantes de toda esta atmosfera, rica e acolhedora que me envolve, a pujança e a sua beleza que se adivinha, misturados com a doce e quente marezia, transmitem-me uma serena paz, uma tranquilidade que há muito não sentia. Porém, com muita pena minha, tenho que ficar mais uma noite no mar. A costa é profunda. Tive que lançar várias vezes a âncora até encontrar a profundidade a que pudesse chegar a corda que amarra. Mas, por fim, lá descobri, junto a uma espécie de ilhéu, o sítio onde a âncora se prendeu. Tenho o estômago um bocado rijo, devido ao coco, às folhas e frutos, que andavam a boiar e que comi.Certamente que não vai ser fácil adormecer. Espero é que não surja mau tempo e possa retemperar um pouco as minhas forças.- Mas, antes de me deitar, ainda vou verter para o gravador o meu primeiro testemunho, junto a esta encosta paradisíaca.
"Mãe: Venho de longe e cansado
(...) Que me resta da fluata que inventei?" - Fernando Grade
(...)"É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!... António Salvado, in "Difícil Passagem"
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