Chamam-se artistas circenses mas no meu tempo de
criança eram conhecidos pelos potriqueiros – Esta palavra caiu em desuso e
creio que também não existe no dicionário atual. Em vez de potriqueiros, surge
a palavra politiqueiros, que tem um significado completamente diferente. Talvez
seja por isso que, na tradução de “Os Saltimbancos” de Charles Baudelaire, aparece
o termo "os saltimbancos, os politiqueiros” : Contudo, para as pessoas da
minha geração ou mais velhas, nomeadamente aquelas nascidas nas remotas aldeias
do interior, dificilmente esquecem as recordações que os antigos potriqueiros lhe
trazem a memória – Sim, eram esses humildes artistas, que, transportando a sua
pequena tenda em bestas, animavam o adro das aldeias com as suas fantasias, cambalhotas, truques, palhaços e
pantominas, pelo que também havia quem lhes chamasse “Os comediantes” ou os “os pantomineiros” - É especialmente deles que hoje venho aqui
falar.
CIRCO –A MÃE DE TODAS AS ARTES
Em homenagem aos valorosos artistas circenses - Antes do cinema, havia o circo
– uma mistura de várias artes de expressão artística: teatro, malabarismo, ilusionismo, ginástica,
pantomina. O circo é conhecido como a
mãe de todas as artes – Hoje, os grandes circos, que são instalados nas feiras,
nas maiores vilas e cidades, sobretudo na
época natalícia, nada têm a ver com o pequeno círculo familiar, ambulante, quer
de antigamente quer de hoje, mas é de admitir que, alguns dos seus empresários
ou artistas, tenham antecedentes com um passado circense, mais recuado. Aliás,
era dos tais talentos, que, apanhados pelo bichinho do circo, se ia formando
gerações de artistas circenses: passando de pais para filhos, netos e por aí
adiante. Um género de sina artística, que, desde que instalada no seu familiar,
jamais se divorciava de um certo fadário errante.
Hoje, há quem, por amor ao
teatro de rua, ao humor brejeiro ou saloio, à piada politica e social, à
cantiga comediante, mesmo não trazendo consigo, qualquer tipo de herança
consanguínea, mas achando-se com talento, sentindo brotar dentro de si a veia
artística, bote mãos à obra e forme o seu grupo, indiferente a ventos e as
marés.
É o caso da “Os Pantomineiros
de Foz Côa”, grupo de teatro da Associação Juvenil Gustavo Filipe. “Apesar de
existir desde a fundação da associação foi apenas batizado oficialmente com
este nome em 2009, homenageando desta forma Armando Neves (um dos maiores
pantomineiros da região) e todos os pantomineiros em geral. O Mercado de Teatro
da AJGF tem como principal objectivo a troca de experiências e emoções
recorrendo à comédia para intervir cultural e socialmente.
Para além dos sketches e vídeos humorísticos apresentados regularmente em várias actividades ao longo do ano, Os Pantomineiros desenvolvem desde 2010 o espectáculo "Minoeiras", integrado no programa das Festas das Amendoeiras em Flor e dos Patrimónios Mundiais, em Vila Nova de Foz Côa. Associação Juvenil Gustavo Filipe
Como disse, nenhum grupo circense ambulante assume o nome de
potriqueiros, todavia, muitas das suas performances artísticas, quase não
mudaram, vão buscar os truques,
charadas, pantomimas, fazes-tudo, à moda antiga – Foi justamente o pequeno espetáculo,
a que, em Agosto do ano passado, pude
assistir no adro da igreja da minha aldeia – Uma sessão apresentada às 10 da
noite, quão hilariante, como comovente, feita apenas com a prata da casa: pai,
mãe e filho, que nasceu e cresceu de aldeia em aldeia. Todos eles inteiramente
dedicados ao circo e já com antecedentes familiares
.
Neste momento, não encontro os apontamentos que tirei nem consigo
lembrar-me do nome desse pequeno grupo de circo, mas não quero deixar de aqui lhe
dedicar este post – Pela sua paixão à arte, pela sua qualidade artística, misto
de simplicidade e ingenuidade para que todos se divirtam e compreendam as suas
habilidades mas também muito profissionalismo e muito talento. E, para manterem
a sua caravana, sabe-se lá, muitas vezes, com que sacríficos. Pois ninguém é obrigado
a tirar bilhetes. A certa altura do espetáculo, quase já para o fim, vão-se sorteando
umas sanhas. Compra as senhas quem quer e habilita-se a certos prémios. É desta forma que vão buscar alguns proventos. E há, de facto, um
apelo muito curioso e entusiasta para que o público participe, onde o despique
do clube de futebol, entra em cena. Todavia, mesmo assim, é uma profissão de risco,
tanto pode dar como não dar. E as despesas, com a deslocação e para fazer face
à vida do dia a dia, não se fazem com água da fonte.
Noutro tempo, à falta de instalação sonora, a forma de anunciarem
a sua presença, era através do megafone simples: depois de instalarem a pequena
tenda, que era transportada em machos ou burros, percorriam as ruas, anunciando
as suas variedades. Hoje, transportam-se em roulottes-viaturas e, logo que
montad0s os alto-falantes, estes fazem
soar música popular aos quatro ventos –
E toda a aldeia sabe que há espetáculo no adro. É que, enquanto o carro do padeiro, da fruta,
da mercearia ou do peixe, vai espalhando os sons pelas ruas por onde passam,
neste caso, o som vem sempre do mesmo ponto, do adro ou da praça mais centrada
e popular
.
Em Agosto, as aldeias perdem a sua pacatez – E retomam, graças
ao regresso dos emigrantes. - se não a vida de outros tempos – porque a desertificação é já por demais acentuada – pelo menos outro movimento e alegria. A freguesia de Chãs, é um desses exemplos – O
ano passado, uns dias depois da festa de Nossa Senhora de Assunção, o adro
voltou de novo animar-se. Agora de uma forma mais simples e menos concorrida. Houve
já quem já tivesse gozado as férias e voltado para França. E também quem já sentisse
cansado de festas e preferisse ficar em casa. Mas há sempre quem não resista à curiosidade.
Foi o meu caso, entre um punhado de pessoas – Mais a criançada..
PRIMEIRO DÁ-SE MÚSICA
Uma ou duas horas antes, vai de se ouvir disco atrás de disco
– Ouvem-se as músicas e canções mais populares, não há palavras, ninguém sabe o
porquê do “aparente” espetáculo.– Mas, as pessoas, levadas pela curiosidade,
vão aparecendo, pouco a pouco. E, em vez de irem sentar-se nas cadeiras, vão-se
acomodando em redor. Pensam que é
preciso pagar e acham que é preferível ver o espetáculo de borla.
”À frente da roulotte, umas pequenas mesas, ladeadas por uma mesa de
som e duas colunas, duas alcatifas a servirem de estrado, um conjunto de
cadeiras em semi-circulo, para quem ali se quisesse sentar. - Chegada a hora azada, dez da noite, é então
que o patriarca da família, não vendo
ninguém sentado, pega no microfone, e
diz: podem sentar-se, que ninguém paga nada! – Mas teve que repetir-se várias
vezes e dizer que, se não visse ninguém sentado nas cadeiras, arrumava a “trouxa”
e não havia espetáculo. Sim, só deste modo é que as escassas pessoas ganharam
coragem e convenceram-se de que esta era a única alternativa de poderem
assistir. Claro que houve quem não
largasse os bancos de pedra onde estava.
Pelo que pude observar, toda a gente gostou e não deu o seu
tempo por perdido – Desde a miudagem aos mais crescidos. Estou em crer,
que aos mais adultos, tal como eu, quanta memória não terão ido
buscar ao baú da sua adolescência! – Pois o circo é isso mesmo: quem o vê, pela
primeira vez, em criança, jamais o esquecerá para o resto da vida. Tem, de
facto, o condão ou a magia de tornar os
adultos crianças e destas rirem tal qual riem e se divertem os mais velhos.
Aliás, no circo ambulante, não falta o convite à participação de crianças. Por natureza,
só elas dão graça a qualquer pantomina
Sim, nunca mais me esqueço, numa das sessões dos potriqueiros
no adro e à luz do petromax, quando eu tinha aí uns seis anitos. Um dos artistas
palhaço, ao chamar alguns garotos para
junto dele, eu fui deles a experimentar
o olhar curioso à minha volta - E então o que é que ele fez?... Pôs um funil à frente da breguilha das
minhas calças, e, voltando o bico para fora, toca de verter água: “É pá! Estás
com medo! Eu não te faço mal nenhum!... Estás-te a mijar?!...” –Obviamente que
a risada foi geral. Presumo que o truque
consistia em espremer algodão em rama molhado. Justamente, foi um dos velhinhos
truques que ali vi.
No entanto, o que me deixou mais impressionado, foram os
dotes do miúdo, que, ora contracenava com o pai, ora com a mãe e fez de palhaço
pobre, fazendo rir toda a agente. Mas não só por isso: também pelo facto de,
certamente, ser ali também um pequeno escravo. De não chegar a ter a mesma
liberdade de outras crianças. Já que, indo de aldeia em aldeia, a sua vida está indissociavelmente ligada ao
circo, condicionada a esse pequeno mundo. E, antes de se apresentar, apercebi-me que os
pais haviam brigado com ele: estava com ar sério e triste. E isto de logo a
seguir ter de se transmudar e fazer rir, tem que se lhe diga…. Não haverá um
dia em que aquele miúdo não lhe apeteça esquecer o circo familiar e dar uma escapulida, ir a ter com a namorada
ou dar largas a outra fantasia qualquer, como fazem em geral as crianças ou
rapazes?!... Sim, foi isto que me deixou a pensar. Tanto mais, que eu aos 12
anos, também levei vida de escravo: andava por lisboa, a trabalhar como marçano,
nas velhas mercearias, a carregar caixotes de vinte quilos ao ombro, a levar as
compras ao clientes, subindo as íngremes
escadas de serviço nas traseiras dos prédios. E, quando perdia o emprego, a ter
que dormir nos arbustos dos jardins ou noutros sítios ainda mais desconfortáveis
e frios – Sobretudo no Inverno, sim, dormi ao relento numa dessas gélidas
noites.
Ora, o pequeno artista circense, não passa as agruras o que
eu passei, é certo, mas nem por isso
deixa de ser um miúdo escravo. E também não se pense que os pais têm vida
fácil – De facto, só por muito amor à arte. Pois não me digam que, quem demonstra
tão elevados dotes artísticos, que não
poderia singrar noutro ramo menos sacrificado e mais lucrativo! – E, depois,
como será a velhice destas pessoas, que, mais das vezes, nunca chegaram a ser
crianças?... Vale a pena ler o texto a seguir de Charles Baudelaire, de “O
Velho Saltimbanco” – Ele dá a resposta do que esperam muitos destes artistas –
Ontem, como hoje – É que, podem mudar os tempos, mas não muda a paixão pela
arte, as suas vicissitudes: alegrias e tristezas.
Excerto de “O VELHO SALTIMBANCO” . um dos pequenos poemas em prosa do livro
“O SPLEEN DE PARIS” de Charles Baudelaire
- Relógio d’Água - Tradução Antônio Pinheiro Guimarães,
O VELHO SALTIMBANCO - Por Charles Baudelaire
Extraído diretamente do livro - "Por toda a parte se mostrava, se espalhava, se divertia o povo em
férias. Era uma daquelas solenidades com que, durante longo tempo, estão a contar os saltimbancos, os
politiqueiros , os que exibem animais e os vendedores ambulantes, para os
compensar dos tempos maus do ano.
Nesses dias creio que o povo tudo esquece, a dor como o trabalho, torna-se
igual às crianças. Para os pequeninos é um dia sem aula, é o horror da escola
esquecido durante vinte e quatro horas. Para os grandes é um armistício
concluído com as potências maldosas da vida, uma trégua e luta universais.
O próprio homem do mundo e o homem ocupado em trabalhos espirituais
dificilmente escapam á influência deste jubileu popular, sorvendo, mesmo sem
querer, o seu quinhão desta atmosfera de alegria. Por mim, nunca lá falto, como
verdadeiro parisiense, passando revista a todas as barracas que se ostentam por
essas épocas solenes
Faziam, na verdade, uma concorrência formidável umas às outras;
esganiçavam-se, berravam, uivavam. Era uma mistura de gritos, de detonações de
cobre, e de explosões de foguetes. Os palhaços e os faz-tudos arrepanhavam as
feições das caras trigueiras, encarquilhadas pelo vento, pela chuva e pelo sol;
lançava-se com o à-vontade de comediantes seguros dos seus efeitos, bons ditos
e piadas, dum cómico sólido e pesado como Molière.
(…) Não havia senão luz, poeira, gritos, alegria, tumulto; uns gastavam,
outros ganhavam, uns e outros igualmente joviais. As crianças penduravam-se nas
saias das mãe para obterem caramelos, ou subirem aos ombros dos pais para
melhor ver um ilusionista deslumbrante como um deus. E por toda a parte
circulava, dominando todos os perfumes, um cheiro a frituras que era como que o
incenso da festa.
No fundo, na última extremidade da fileira das barracas, como se, cheio de
vergonha, ele se tivesse exilado a si próprio de todos estes esplendores, vi um
pobre saltimbanco, arqueado, caduco, decrépito, uma ruina de homem apoiado a um dos barrotes da sua barraca; uma barraca
mais miserável que a do selvagem bestializado, e onde dois cotos de velas, a derreter-se e a
fumegar, ainda alumiavam demasiado bem a miséria.
Por toda a parte a alegria, o ganho, o deboche; por toda a parte a certeza
do pão para os amanhãs, por toda a parte a explosão frenética da vitalidade.
Aqui a miséria absoluta, a miséria embuçada, para cúmulo de horror, em andrajos
cómicos, onde a necessidade, bem mais do que a arte, tinha inserido o
contraste. Ele não ria, o desgraçado! Não chorava, não dançava, não
gesticulava, não gritava; não cantava qualquer canção, nem alegre nem
lamentável, não implorava. O seu destino estava traçado.
Mas que olhar profundo, inolvidável, ele passeava por sobre a multidão e as luzes, cuja onda
movediça se detinha alguns passos da sua repulsiva miséria! Senti a garganta
apertada pela mão terrível da histeria e pareceu-me que o olhar se me velava
com essas lágrimas rebeldes que não querem cair.
Que fazer? De que serviria perguntar ao infortunado que espécie de
curiosidade, de maravilha, ele tinha para mostrar nas suas trevas pestilentas,
por detrás da sua cortina esfarrapada?
Mas na verdade não me atrevia; e, embora a razão da minha timidez vos possa
fazer rir, direi que temia humilha-lo. Enfim, acabava de resolver-me depor, à passagem, algum dinheiro sobre
aquelas tábuas, espetando que ele adivinhasse a minha intenção quando um grande
refluxo de gente, causado não sei porque alvoroço, me levou para longe dele.
E, ao regressar, obsediado por essa visão, eu procurava analisar a minha
dor súbita, e disse comigo: “Acabo de ver a imagem do velho homem de letras que
sobreviveu à geração de que foi vibrante animador; do velho poeta sem amigos, sem família, sem filhos, abatido
pela miséria e pela ingratidão pública,
e em cuja barraca o mundo ingrato não mais quer entrar!”
OS POTRIQUEIROS - OUTRAS MEMÓRIAS DE QUEM OS CONHECEU
"Conversava-se ao desenfado sobre política e
políticos no meio daquela gente tranquila das serras do norte. Aproveitando uma
pausa nos prolóquios, uma mulherzinha miúda, de atentos olhos de azeviche,
envolta nos trapos negros de quem já muito aturara à vida em fomes e pesares,
sai-se de lá com a exclamação desenganada: São uns potriqueiros! E a
palavra saltou-me, inteira na sua risonha complacência, dos escaninhos das
memórias da infância, onde adormecera há que vidas.
Onde iam eles, os potriqueiros!
Nos tempos esganados que se seguiram à Segunda
Grande Guerra, não era fácil para um pobre acudir todos os dias aos ladridos da
barriga atormentada pela fome e havia que recorrer a almudes de criatividade
para rapar o magro pão de cada dia, dia sim dia não. Dentre esses imaginativos
salientavam-se os potriqueiros. Potriqueiros lhes chamava o povo do norte,
fazendo uso de uma simpática corruptela de pelotiqueiros, significando uma
espécie de artistas mais ou menos circenses que faziam jogos malabares com
pequenas pelas, cujo diminutivo seria pelotas.
O povo até que gostava deles, dos potriqueiros,
seus irmãos na miséria e descendentes de uma longa linhagem de artistas saídos
do povo, cujos ascendentes mais remotos se situavam entre aqueles velhos
jograis que, no tempo dos afonsinos, percorriam feiras e vilares com seus momos
e mistérios, seus cantares e poemas, numa Idade Média que, nas serras do
interior, teimou em prolongar-se pelo século XX, tanto no imaginário religioso
e profano, como na maneira de lidar com a terra. Com o tempo a palavra foi
alargando a sua dimensão semântica e passou a significar também aqueles que
mostram capacidade de sobreviver à custa de simpáticas artes e manhas de
carácter mais ou menos histriónico.
Esses potriqueiros arribavam à aldeia pelo
Outono, quando partiam as andorinhas e o lavrador dava por findas as canseiras
das malhas, da arranca das batatas, pois que os ouriços dos castanheiros, ainda
não tinham começado de arreganhar.
(…)Desapareceram os potriqueiros. Desapareceram
levados pela correnteza do imparável tempo que tudo consigo arrebata. E, com
eles varreu-se a palavra mágica, potriqueiros, que nem sequer o Houaïss nem o
Dicionário da Academia registam. - Excerto de Destaques « Notícias de Trás-os-Montes e Alto Douro
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