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domingo, 4 de maio de 2014

Artistas circenses ambulantes – Herança dos pequenos grupos de saltimbancos, potriqueiros, comediantes ou pantomineiros - Ainda hoje assentam a tenda nos adros das aldeias – Foz Côa tem um destes grupos – através da Associação Juvenil Gustavo Filipe

 


Chamam-se artistas circenses mas no meu tempo de criança eram conhecidos pelos potriqueiros – Esta palavra caiu em desuso e creio que também não existe no dicionário atual. Em vez de potriqueiros, surge a palavra politiqueiros, que tem um significado completamente diferente. Talvez seja por isso que, na tradução de “Os Saltimbancos” de Charles Baudelaire, aparece o termo   "os saltimbancos, os politiqueiros” : Contudo, para as pessoas da minha geração ou mais velhas, nomeadamente aquelas nascidas nas remotas aldeias do interior, dificilmente esquecem as recordações que os antigos potriqueiros lhe trazem a memória – Sim, eram esses humildes artistas, que, transportando a sua pequena tenda em bestas, animavam o adro das aldeias com as suas  fantasias, cambalhotas, truques, palhaços e pantominas, pelo que também havia quem lhes chamasse “Os comediantes” ou os  “os pantomineiros”  - É especialmente deles que hoje venho aqui falar.





CIRCO –A MÃE DE TODAS AS ARTES

Em homenagem aos valorosos artistas circenses - Antes do cinema, havia o circo – uma mistura de várias artes de expressão artística:  teatro, malabarismo, ilusionismo, ginástica, pantomina. O circo é conhecido  como a mãe de todas as artes – Hoje, os grandes circos, que são instalados nas feiras, nas maiores vilas e cidades,  sobretudo na época natalícia, nada têm a ver com o pequeno círculo familiar, ambulante, quer de antigamente quer de hoje, mas é de admitir que, alguns dos seus empresários ou artistas, tenham antecedentes com um passado circense, mais recuado. Aliás, era dos tais talentos, que, apanhados pelo bichinho do circo,  se ia formando gerações de artistas circenses: passando de pais para filhos, netos e por aí adiante. Um género de sina artística, que, desde que instalada no seu familiar, jamais se divorciava de um certo fadário errante. 



Hoje, há quem, por amor ao teatro de rua, ao humor brejeiro ou saloio, à piada politica e social, à cantiga comediante, mesmo não trazendo consigo, qualquer tipo de herança consanguínea, mas achando-se com talento, sentindo brotar dentro de si a veia artística, bote mãos à obra e forme o seu grupo, indiferente a ventos e as marés. 

É o caso da “Os Pantomineiros de Foz Côa”, grupo de teatro da Associação Juvenil Gustavo Filipe. “Apesar de existir desde a fundação da associação foi apenas batizado oficialmente com este nome em 2009, homenageando desta forma Armando Neves (um dos maiores pantomineiros da região) e todos os pantomineiros em geral. O Mercado de Teatro da AJGF tem como principal objectivo a troca de experiências e emoções recorrendo à comédia para intervir cultural e socialmente.

Para além dos sketches e vídeos humorísticos apresentados regularmente em várias actividades ao longo do ano, Os Pantomineiros desenvolvem desde 2010 o espectáculo "Minoeiras", integrado no programa das Festas das Amendoeiras em Flor e dos Patrimónios Mundiais, em Vila Nova de Foz Côa.
 Associação Juvenil Gustavo Filipe
OS POTRIQUEIROS DA MINHA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA ESTÃO DE VOLTA OU NUNCA MORRERAM?

Como disse, nenhum grupo circense ambulante assume o nome de potriqueiros, todavia, muitas das suas performances artísticas, quase não mudaram,  vão buscar os truques, charadas, pantomimas, fazes-tudo, à moda antiga – Foi justamente o pequeno espetáculo, a  que, em Agosto do ano passado, pude assistir no adro da igreja da minha aldeia – Uma sessão apresentada às 10 da noite, quão hilariante, como comovente, feita apenas com a prata da casa: pai, mãe e filho, que nasceu e cresceu de aldeia em aldeia. Todos eles inteiramente dedicados ao circo e já com antecedentes familiares
.
Neste momento, não encontro os apontamentos que tirei nem consigo lembrar-me do nome desse pequeno grupo de circo, mas não quero deixar de aqui lhe dedicar este post – Pela sua paixão à arte, pela sua qualidade artística, misto de simplicidade e ingenuidade para que todos se divirtam e compreendam as suas habilidades mas também muito profissionalismo e muito talento. E, para manterem a sua caravana, sabe-se lá, muitas vezes, com que sacríficos. Pois ninguém é obrigado a tirar bilhetes. A certa altura do espetáculo, quase já para o fim, vão-se sorteando umas sanhas. Compra as senhas quem quer e habilita-se a  certos prémios. É desta forma que  vão buscar alguns proventos. E há, de facto, um apelo muito curioso e entusiasta para que o público participe, onde o despique do clube de futebol, entra em cena. Todavia, mesmo assim, é uma profissão de risco, tanto pode dar como não dar. E as despesas, com a deslocação e para fazer face à vida do dia a dia, não se fazem com água da fonte. 

Noutro tempo, à falta de instalação sonora, a forma de anunciarem a sua presença, era através do megafone simples: depois de instalarem a pequena tenda, que era transportada em machos ou burros, percorriam as ruas, anunciando as suas variedades. Hoje, transportam-se em roulottes-viaturas e, logo que montad0s os  alto-falantes, estes fazem soar  música popular aos quatro ventos – E toda a aldeia sabe que há espetáculo no adro.  É que, enquanto o carro do padeiro, da fruta, da mercearia ou do peixe, vai espalhando os sons pelas ruas por onde passam, neste caso, o som vem sempre do mesmo ponto, do adro ou da praça mais centrada e popular
.

Em Agosto, as aldeias perdem a sua pacatez – E retomam, graças ao regresso  dos emigrantes. -   se não  a vida de outros tempos – porque a desertificação  é já por demais acentuada – pelo menos  outro movimento e alegria.  A freguesia de Chãs, é um desses exemplos – O ano passado, uns dias depois da festa de Nossa Senhora de Assunção, o adro voltou de novo animar-se. Agora de uma forma mais simples e menos concorrida. Houve já quem já tivesse gozado as férias e voltado para França. E também quem já sentisse cansado de festas e preferisse ficar em casa.  Mas há sempre quem não resista à curiosidade. Foi o meu caso, entre  um punhado de pessoas – Mais a criançada..

PRIMEIRO DÁ-SE MÚSICA

Uma ou duas horas antes, vai de se ouvir disco atrás de disco – Ouvem-se as músicas e canções mais populares, não há palavras, ninguém sabe o porquê do “aparente” espetáculo.– Mas, as pessoas, levadas pela curiosidade, vão aparecendo, pouco a pouco. E, em vez de irem sentar-se nas cadeiras, vão-se acomodando em redor. Pensam que  é preciso pagar e acham que é preferível ver o espetáculo de borla.  

”À frente da roulotte,  umas pequenas mesas, ladeadas por uma mesa de som e duas colunas, duas alcatifas a servirem de estrado, um conjunto de cadeiras em semi-circulo, para quem ali se quisesse sentar.  - Chegada a hora azada, dez da noite, é então que o patriarca da família,  não vendo ninguém sentado,  pega no microfone, e diz: podem sentar-se, que ninguém paga nada! – Mas teve que repetir-se várias vezes e dizer que, se não visse ninguém sentado nas cadeiras, arrumava a “trouxa” e não havia espetáculo. Sim, só deste modo é que as escassas pessoas ganharam coragem e convenceram-se de que esta era a única alternativa de poderem assistir. Claro que  houve quem não largasse os bancos de pedra onde estava.

Pelo que pude observar, toda a gente gostou e não deu o seu tempo por perdido – Desde a miudagem aos mais crescidos. Estou em crer, que  aos mais adultos,  tal como eu, quanta memória não terão ido buscar ao baú da sua adolescência! – Pois o circo é isso mesmo: quem o vê, pela primeira vez, em criança, jamais o esquecerá para o resto da vida. Tem, de facto, o condão ou a  magia de tornar os adultos crianças e destas rirem tal qual riem e se divertem os mais velhos. Aliás, no circo ambulante, não falta o convite à participação de crianças. Por natureza, só elas dão graça a qualquer pantomina

Sim, nunca mais me esqueço, numa das sessões dos potriqueiros  no adro e à luz do petromax,  quando eu tinha aí uns seis anitos. Um dos artistas palhaço, ao chamar alguns  garotos para junto dele, eu fui deles a  experimentar o olhar curioso à minha volta - E então o que é que ele  fez?... Pôs um funil à frente da breguilha das minhas calças, e, voltando o bico para fora, toca de verter água: “É pá! Estás com medo! Eu não te faço mal nenhum!... Estás-te a mijar?!...” –Obviamente que a risada foi geral.  Presumo que o truque consistia em espremer algodão em rama molhado. Justamente, foi um dos velhinhos truques que ali vi.


No entanto, o que me deixou mais impressionado, foram os dotes do miúdo, que, ora contracenava com o pai, ora com a mãe e fez de palhaço pobre, fazendo rir toda a agente. Mas não só por isso: também pelo facto de, certamente, ser ali também um pequeno escravo. De não chegar a ter a mesma liberdade de outras crianças. Já que, indo de aldeia em aldeia,  a sua vida está indissociavelmente ligada ao circo, condicionada a esse pequeno mundo.  E, antes de se apresentar, apercebi-me que os pais haviam brigado com ele: estava com ar sério e triste. E isto de logo a seguir ter de se transmudar e fazer rir, tem que se lhe diga…. Não haverá um dia em que aquele miúdo não lhe apeteça esquecer o circo familiar  e dar uma escapulida, ir a ter com a namorada ou dar largas a outra fantasia qualquer, como fazem em geral as crianças ou rapazes?!... Sim, foi isto que me deixou a pensar. Tanto mais, que eu aos 12 anos, também levei vida de escravo:  andava por lisboa, a trabalhar como marçano, nas velhas mercearias, a carregar caixotes de vinte quilos ao ombro, a levar as compras ao clientes, subindo  as íngremes escadas de serviço nas traseiras dos prédios. E, quando perdia o emprego, a ter que dormir nos arbustos dos jardins ou noutros sítios ainda mais desconfortáveis e frios – Sobretudo no Inverno, sim, dormi ao relento numa dessas gélidas noites.

Ora, o pequeno artista circense, não passa as agruras o que eu passei, é certo,  mas nem por isso deixa de ser  um miúdo escravo. E  também não se pense que os pais têm vida fácil – De facto, só por muito amor à arte. Pois não me digam que, quem demonstra tão  elevados dotes artísticos, que não poderia singrar noutro ramo menos sacrificado e mais lucrativo! – E, depois, como será a velhice destas pessoas, que, mais das vezes, nunca chegaram a ser crianças?... Vale a pena ler o texto a seguir de Charles Baudelaire, de “O Velho Saltimbanco” – Ele dá a resposta do que esperam muitos destes artistas – Ontem, como hoje – É que, podem mudar os tempos, mas não muda a paixão pela arte, as suas vicissitudes: alegrias e tristezas.


O VELHO SALTIMBANCO  - Por Charles Baudelaire

Extraído diretamente do livro - "Por toda a parte se mostrava, se espalhava, se divertia o povo em férias. Era uma daquelas solenidades com que, durante longo tempo,  estão a contar os saltimbancos, os politiqueiros , os que exibem animais e os vendedores ambulantes, para os compensar dos tempos maus do ano.

Nesses dias creio que o povo tudo esquece, a dor como o trabalho, torna-se igual às crianças. Para os pequeninos é um dia sem aula, é o horror da escola esquecido durante vinte e quatro horas. Para os grandes é um armistício concluído com as potências maldosas da vida, uma trégua e luta universais.

O próprio homem do mundo e o homem ocupado em trabalhos espirituais dificilmente escapam á influência deste jubileu popular, sorvendo, mesmo sem querer, o seu quinhão desta atmosfera de alegria. Por mim, nunca lá falto, como verdadeiro parisiense, passando revista a todas as barracas que se ostentam por essas épocas solenes

Faziam, na verdade, uma concorrência formidável umas às outras; esganiçavam-se, berravam, uivavam. Era uma mistura de gritos, de detonações de cobre, e de explosões de foguetes. Os palhaços e os faz-tudos arrepanhavam as feições das caras trigueiras, encarquilhadas pelo vento, pela chuva e pelo sol; lançava-se com o à-vontade de comediantes seguros dos seus efeitos, bons ditos e piadas, dum cómico sólido e pesado como Molière.

(…) Não havia senão luz, poeira, gritos, alegria, tumulto; uns gastavam, outros ganhavam, uns e outros igualmente joviais. As crianças penduravam-se nas saias das mãe para obterem caramelos, ou subirem aos ombros dos pais para melhor ver um ilusionista deslumbrante como um deus. E por toda a parte circulava, dominando todos os perfumes, um cheiro a frituras que era como que o incenso da festa.

No fundo, na última extremidade da fileira das barracas, como se, cheio de vergonha, ele se tivesse exilado a si próprio de todos estes esplendores, vi um pobre saltimbanco, arqueado, caduco, decrépito, uma ruina de homem apoiado  a um dos barrotes da sua barraca; uma barraca mais miserável que a do selvagem bestializado, e onde  dois cotos de velas, a derreter-se e a fumegar, ainda alumiavam demasiado bem a miséria.

Por toda a parte a alegria, o ganho, o deboche; por toda a parte a certeza do pão para os amanhãs, por toda a parte a explosão frenética da vitalidade. Aqui a miséria absoluta, a miséria embuçada, para cúmulo de horror, em andrajos cómicos, onde a necessidade, bem mais do que a arte, tinha inserido o contraste. Ele não ria, o desgraçado! Não chorava, não dançava, não gesticulava, não gritava; não cantava qualquer canção, nem alegre nem lamentável, não implorava. O seu destino estava traçado.

Mas que olhar profundo, inolvidável, ele passeava  por sobre a multidão e as luzes, cuja onda movediça se detinha alguns passos da sua repulsiva miséria! Senti a garganta apertada pela mão terrível da histeria e pareceu-me que o olhar se me velava com essas lágrimas rebeldes que não querem cair.

Que fazer? De que serviria perguntar ao infortunado que espécie de curiosidade, de maravilha, ele tinha para mostrar nas suas trevas pestilentas, por detrás da sua cortina  esfarrapada? Mas na verdade não me atrevia; e, embora a razão da minha timidez vos possa fazer rir, direi que temia humilha-lo. Enfim, acabava de resolver-me  depor, à passagem, algum dinheiro sobre aquelas tábuas, espetando que ele adivinhasse a minha intenção quando um grande refluxo de gente, causado não sei porque alvoroço, me levou para longe dele.

E, ao regressar, obsediado por essa visão, eu procurava analisar a minha dor súbita, e disse comigo: “Acabo de ver a imagem do velho homem de letras que sobreviveu à geração de que foi vibrante animador; do velho poeta  sem amigos, sem família, sem filhos, abatido pela miséria  e pela ingratidão pública, e em cuja barraca o mundo ingrato não mais quer entrar!”
Excerto de “O VELHO SALTIMBANCO” . um dos pequenos poemas em prosa do livro “O SPLEEN DE PARIS” de Charles Baudelaire  - Relógio d’Água - Tradução Antônio Pinheiro Guimarães,

 OS POTRIQUEIROS - OUTRAS MEMÓRIAS DE QUEM OS CONHECEU

"Conversava-se ao desenfado sobre política e políticos no meio daquela gente tranquila das serras do norte. Aproveitando uma pausa nos prolóquios, uma mulherzinha miúda, de atentos olhos de azeviche, envolta nos trapos negros de quem já muito aturara à vida em fomes e pesares, sai-se de lá com a exclamação desenganada: São uns potriqueiros! E a palavra saltou-me, inteira na sua risonha complacência, dos escaninhos das memórias da infância, onde adormecera há que vidas.

Onde iam eles, os potriqueiros!
Nos tempos esganados que se seguiram à Segunda Grande Guerra, não era fácil para um pobre acudir todos os dias aos ladridos da barriga atormentada pela fome e havia que recorrer a almudes de criatividade para rapar o magro pão de cada dia, dia sim dia não. Dentre esses imaginativos salientavam-se os potriqueiros. Potriqueiros lhes chamava o povo do norte, fazendo uso de uma simpática corruptela de pelotiqueiros, significando uma espécie de artistas mais ou menos circenses que faziam jogos malabares com pequenas pelas, cujo diminutivo seria pelotas.

O povo até que gostava deles, dos potriqueiros, seus irmãos na miséria e descendentes de uma longa linhagem de artistas saídos do povo, cujos ascendentes mais remotos se situavam entre aqueles velhos jograis que, no tempo dos afonsinos, percorriam feiras e vilares com seus momos e mistérios, seus cantares e poemas, numa Idade Média que, nas serras do interior, teimou em prolongar-se pelo século XX, tanto no imaginário religioso e profano, como na maneira de lidar com a terra. Com o tempo a palavra foi alargando a sua dimensão semântica e passou a significar também aqueles que mostram capacidade de sobreviver à custa de simpáticas artes e manhas de carácter mais ou menos histriónico.

Esses potriqueiros arribavam à aldeia pelo Outono, quando partiam as andorinhas e o lavrador dava por findas as canseiras das malhas, da arranca das batatas, pois que os ouriços dos castanheiros, ainda não tinham começado de arreganhar.
(…)Desapareceram os potriqueiros. Desapareceram levados pela correnteza do imparável tempo que tudo consigo arrebata. E, com eles varreu-se a palavra mágica, potriqueiros, que nem sequer o Houaïss nem o Dicionário da Academia registam. - Excerto de  Destaques « Notícias de Trás-os-Montes e Alto Douro


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