Amândio César (grande homem de letras, que em sua vida tão vincada afeição mostrara por estas terras, das quais tanto se orgulhava de ter algumas raízes familiares e com quem tive o grato
prazer de conviver), disse que "Vila Nova de Foz Côa possuía três forais, dos
quais dois antigos e o terceiro novo, datado depois da carta régia de 22 de
Novembro de 1497, que constitui a reforma manuelina, baliza da distinção entre
o primeiro e o segundo"
Por Jorge Trabulo Marques - Jornalista
700 ANOS - UMA EFEMÉRIDE IGNORADA - TODAVIA FAZ PARTE DA HISTÓRIA DE FOZ CÔA
Salvo melhor informação, não me apercebi que a data tivesse feito parte de algum agendamento especial - Mas faz parte da vida do nosso municipio.
Completaram-se,
no passado dia 16 de Junho, 500 anos, sobre o terceiro foral, outorgado por D.
Manuel, datado de Lisboa aos 16 de Junho de 1514, a Vila Nova de Foz Côa.
.A efeméride foi comemorada pelo município
fozcoense, com vários eventos, todavia, há uma outra efeméride que merece ser recordada, que também teve a sua importância na vida do municipio foscoense - Que é o segundo foral, assinado em Lisboa, aos 24 de Julho de 1314.
A
FOZ CÔA, FORAM-LHE ATRIBUIDOS TRÊS FORAIS RÉGIOS - DOIS DOS QUAIS, COM CENTENÁRIOS
ESTE ANO - RESPETIVAMETE, 500 E 700 ANOS.
Qual dos
três o mais importante? - Naturalmente que todos eles foram relevantes e contribuíram
para tornar Foz Côa, na cidade que é hoje - Amândio César, poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário e
jornalista, com raízes familiares a Foz Côa, da qual nutria profundos laços
afetivos, chegou a dissertar sobre esta questão, na conferência que proferiu,
em 24 de Abril de 1954, na Casa regional da Beira Douro, sobre Vila Nova de Foz
Côa, da qual aqui vamos transcrever alguns excertos
Responde, Amândio César:
"No passado - os forais -
que, como queria Alfredo Pimenta e aqui me parece aplicar-se bem, nem sempre é
criador do regime municipal. é muitas vezes sancionador de situações pré-existentes»
e, deste modo, se poderiam definir como «diplomas que contêm leis particulares
por que os concelhos se regiam, e que visavam principalmente matéria
tributária, ainda que às vezes sob a aparência de matéria criminal, e os privilégios
da população». Que assim deve ter sido me parece, repilo, pois que D. Diniz
concede a Fozcoa o seu primeiro foral em Portalegre, aos 21 de Maio de 1299 e o
segundo, em Lisboa, aos 24 de Julho de 1314. Apesar disso só D. João 1 a
elevará à categoria do Vila. Isso explica que, quer no Pelourinho, quer na
Igreja, como já referi, se veja o emblema do primeiro soberano da segunda
dinastia: a Flor de Liz.
O terceiro foral foi outorgado por D. Manuel l e
datado de Lisboa aos 16 de Junho de 1514. Pode, pois, dizer-se, regularmente,
que D. Diniz foi o fundador da futura Vila, remontando a história das
liberdades concelhias, a muito longe: possuindo Vila Nova de Fozcoa três
forais, dos quais dois antigos e o terceiro novo, datado depois da Carta Régia
de 22 de Novembro de 1497, que constitue a reforma manuelina, baliza da
distinção entre os primeiros e o segundo
"
RECORDAR FOZ CÔA ATRAVÉS
DA MEMÓRIA DE AMÂNDIO CÉSAR
"Meus amigos: estamos numa província de sonho - a província
da Beira-Douro que não se estuda nos compêndios, mas se tem e se conserva no
coração; não é pecado (ao menos não será pecado grave ... ) falar-vos como se
sonhasse em voz alta de uma terra que é possível não seja da forma que meus
olhos a viram e minha curiosidade a estudou: Vila Nova de Foz Côa" - Amândio
César - O poeta e escritor que amava profundamente Vila Nova de Foz Côa.
Numa
altura, em que se comemora mais um importante foral, que marcou o progresso e o
desenvolvimento destas terras e suas gentes, sim, nada mais apropriado que trazer aqui à memória as impressões,
do distinto poeta e escritor, Amândio César, o qual, conquanto aqui
não tivesse nascido, o recebera, ainda no colo de sua mãe.
Amândio César: "Devo confessá-lo em voz alia:
eu não sou de Fozcoa. Mas o sangue me prende lá, lá tem raízes o meu corpo e a
minha alma. Não viesse de lá transferido o meu Pai, após qualquer acontecimento
político, e eu por certo gostaria da terra por lá ler nascido e nada mais. Mas,
ao contrário daqueles filhos de portugueses que nascidos no Brasil chamam
galegos aos seus pro· genitores, foi por não ter nascido em Fozcoa que não
gostei deIa: amei-a e amo-a - " - Palavas proferidas na referida
conferência, na Casa Regional da Beira Douro,
em 24 de Abril de 1954
Amândio César,
nacido em Arcos de Valdevez, em 12
de Julho de 1921, Amândio César, faleceu em 1987, aos 67 anos, em
Lisboa, onde residia - Amava, apaixonadamente, estas
terras, «a vilazinha de sonho, aquela que eu
descobri com os olhos virgens da minha longínqua infância: que eu vivi na
gárrula juventude que morreu há muito ; que me doeu no corpo e na alma de uma
adolescência que não mais se repetirá .
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, foi professor do ensino técnico. Um dos elementos do
grupo Poesia Nova e o fundador da revista Quatro Ventos (Braga, 1954-1957).
Como ensaísta e crítico literário, dedicou parte da sua atividade à divulgação
das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa - Autor de uma
vasta obra - poesia, contos, ensaio, antologia, geografia literária,
reportagem.
Deu-me a honra e o prazer de me receber em sua casa, para
uma breve entrevista à Rádio Comercial, embora, naquela altura, já se
encontrasse bastante doente, tendo-o conhecido, pela primeira vez, em S. Tomé,
aquando da visita do Almirante Américo Tomás, na mesma semana em que faleceria,
Oliveira Salazar
- Por sinal, íamos no mesmo carro, a caminho da então Vila das
Neves, quando a rádio deu a noticia - Foi também nesta ilha que tomei conhecimento, da sua extensa obra, através da "Presença do Arquipélago de S. Tomé e Príncipe na Moderna Cultura Portuguesa, a primeira antologia, até então publicada, que levou ao seu autor um ano na sua elaboração, tendo sido aprsesentada no ano anterior às comemorações dos 500 anos da descoberta deste arquipélago. -
Foi nessa ocasião que eu soube dos seus profundos laços a Foz Côa: extremamente expansivo e comunicativo, não hesitando em usar o nosso vernáculo foscoense, do qual recebera até o timbre sonoro do seu linguarejar - Quem ouvisse falar, e conhecesse bem Foz Cõa, não duvidava que ele era um dos nossos conterrâneos. Embora não tendo cá nascido, porém, a sua vivência desde tenra idade, marcá-lo-ia para toda a vida.
AMÂNDIO
CÉSAR - Um César no domínio do léxico fozcoense" - escreveu Manuel Daniel
Manuel Daniel, advogado e distinta figura das letras e do municipalismo,
grande admirador da vida e obra de Amândio César, tendo-lhe dedicado um extenso
artigo no nº 3 da Revista CEPIHS, do Centro de Estudos de Promoção e
Investigação Histórica e Social - de Trás-os-Montes, lançada por ocasião
da cerimónia de homenagem à poeta Drª Maria Assunção Carqueja, esposa do
Prof. Adriano Vasco Rodrigues, que posteriormente viria a falecer -
Alguns excertos desse interessante artigo, foram também editados no semanário
OFOZCOENSE, com algumas passagens da citada conferência, que havia sido integralmente
publicada numa separata do Boletim da Casa Regional do Douro, de cuja fonte
também nos servimos...Referindo-se aos laços de Amândio
César, a Vila Nova de Foz Côa, Manuel Daniel, começou por lembrar o homem
o "Fozcoense nascido no Minho"
"Nasceu no coração do Minho, abrindo pela primeira vez os
olhos para a paisagem edílica da Serra da Peneda, em Arcos de Valdevez. Para
esta bela cidade tinha sido transferido o progenitor que, todavia,
mantinha os seus interesses na região do Alto Douro, esse pedaço de
oiro que se integra "no reino maravilhoso" que outro
escritor e poeta celebrizou. Vila Nova de Foz Côa, uma assombrosa varanda sobre
os montes reboredos e o peredo dito dos castelhanos, chamou-o ainda bébé de
fralda, para ser primoroso entendor da indissocracia fozcoense, com o
vigor de quem lhe descobrirá a alma para depois a fazer resplandecer,
através da sua obra, como se aquela tivesse uma riqueza tão grande e tão
guardada como sucede com o famoso pálio de Cidadelhe, concelho de Pinhel."
A FRONTALIDADE DE UM GRANDE HOMEM DE LETRAS - PROSCRITO PÓS 25 DE ABRIL
"Como ensaísta e crítico literário, dedicou parte
da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de
expressão portuguesa, nomeadamente a angolana, sempre de um ponto de vista
"colonial" ou "ultramarino" mas sem discriminar os que
politicamente lhe não eram pares" - Todavia, descrimimram-no a ele.
"Vila Nova de Foz Côa é o meu caleidoscópio
sentimental que desde menino não me canso de ver"
"Nascido
por acaso, este português já ilustre do Alto Minho, nas pitorescas margens do
vez, lá para os arcos que têm estranhas semelhanças com a nossa atlântica Ilha
Verde, julga-se dúrio-beirão pelo sangue e pelo coração . É que os seus
extremosos pais radicaram na terra adusta de Foz Côa" - Palavras do Engº
Artur Castilho, na apresentação do conferente, em 24 de Abril de 1954
Mas
passemos a palavra a Amândio César - citando alguns dos calorosos passos da
inesquecível conferência
:
(...) "Meus amigos: estamos numa
província de sonho - a província da Beira-Douro que não se estuda nos
compêndios, mas se tem e se conserva no coração; não é pecado (ao menos não será
pecado grave ... ) falar-vos como se sonhasse em voz alta de uma terra que é
possível não seja da forma que meus olhos a viram e minha curiosidade a
estudou: Vila Nova de Fozcoa.
Assim sendo, na casa de uma província de sonho eu
falarei de uma vilazinha de sonho também, aquela que eu descobri com os olhos
virgens da minha longínqua infância: que eu vivi na gárrula juventude que
morreu há .muito ; que me doeu no corpo e na alma de uma adolescência que não
mais se repetirá - e que eu, agora, pretendo ressuscitar no seu conjunto para
dar tanto quanto possível uma Fisionomia.' a qual eu desde já declaro ser
pessoal e intransmissível, como bilhete de identidade sentimental. .. Por isso
mesmo, mais vivida com amor, mais individualizada, mais para uso próprio, do
que para lugar comum, hierático e objectivo. Por essa razão, se eu for além do
que Vila Nova de Fozcoa é; ou ficar àquem do que ela, na verdade, também é -
perdoai-me! Da mesma forma se vos parecer que exagerei naquilo que sobre ela e
sua gente eu digo - perdoai-me ainda e sobretudo, aqui. Homem de lá de cima,
não me sei ficar na comodidade fácil do meio termo: ou tudo ou nada. Daí que eu
ame apaixonadamente a terra de que vou falar; e quem, apaixonadamente, feio
ama, consequentemente lindíssimo lhe parece. E pode bem ser, este, o meu caso."
INDELÉVEIS RAÍZES
"Devo confessá-lo em voz alia:
eu não sou de Fozcoa. Mas o sangue me prende lá, lá tem raízes o meu corpo e a
minha alma. Não viesse de lá transferido o meu Pai, após qualquer acontecimento
político, e eu por certo gostaria da terra por lá ler nascido e nada mais. Mas,
ao contrário daqueles filhos de portugueses que nascidos no Brasil chamam
galegos aos seus pro· genitores, foi por não ter nascido em Fozcoa que não
gostei deIa: amei-a e amo-a e desse amor aqui venho prestar o meu pobre e
pessoal testemunho. Nascido, pois, no Minho - sem querer como tantas vezes o
tenho sublinhado, desde ,quando eu amo aquela outra terrinha, que fica para lá
de tudo, quase resvés com a fronteira espanhola? Eu conto.
Era eu muito menino
quando me levaram a fazer a primeira viagem até ao Douro, e o Douro, para mim, era uma nebulosa de que recordo dois factos essenciais: o carro puxado a
cavalos que me levou do Pocinho até à Vila e o pavor telúrico dessa caminhada,
na carripana do Tio Elídio, em que se destacavam dois precipícios, onde o dito
transporte naufragava vezes sem conta: o Vale do Nideo e o Roncle. Para mim o
perigo era taludo e de meter num bolso a minha pequenina valentia ! ! Daí que
nessa tarde rezasse mais padre-nossos e ave-marias, nos curtos nove quilómetros
do percurso, do que por certo rezei nos outros percursos todos das minhas caminhadas!
Foi a primeira vez que subi até ao cimo daquele monte - escalvado, seco,
deserto e nu, como o definiria Guerra Junqueiro - na canícula daquele Agosto
longínquo. De essencial isso e os ciprestes, muito esguios, muito estáticos,
como guardas-fiscais de um reino de maravilha.
Mas a Vila que eu vejo, agora,
diante de mim, que eu recordo aqui, não é esta esquemática figuração da
infância; é aquela outra que se veio juntar a este esboço primitivo: uma
impressão profunda hoje, um apontamento rápido amanhã; aqui mais uma cor, uma
pincelada dramática, além mais um recanto que não se esquece mais; a vida
diária com os garotos da rua nos jogos da infância - o estopa linho lã, casca
de romã; o dicotim, dicolão; a ursa; a bandeira; o boloque, - o convívio com a
gente do povo, com os falares, os dito>, as expressões castiças, as
narrativas, as comidas de uma sobriedade quase esquelética e os trabalhos de
campo que me seduziam à semelhança dos cantares das sereias. No fim: uma visão,
uma imagem, um políptico do conjunto - mas tudo isto sempre renovado como as
imagens de um caleidoscópio gigantesco, que com os mesmos vidros nos dão,
categoricamente, sempre e sem mentiras um figurativo novo. Sim - isso é verdade
- Vila Nova de Fozcoa é o meu caleidoscópio sentimental que desde menino não me
canso de ver, porque sei que sempre verei uma imagem bela que eu ainda não
tinha visto ou, pelo menos, nela ainda não tinha reparado."
QUE LINDA COISA ESTA IGREJA É!"
"Fixo uma imagem desse
caleidoscópio sentimental e meus olhos descobrem a Igreja. Que bela coisa, que
linda coisa esta Igreja é! A sua volta. tudo o resto se me afigura pequeno: e
Ela nem muito grande, nem muito larga, nem muito alta. Ou seja, como diz a fala
do povo quando se refere a certas mulheres bonitas e muito bem feitas: é
maneirinha!
Também é maneirinha a Igreja
Paroquial de Vila Nova de Fozcoa. Claro que, quando eu era menino, a Igreja me
aparecia de outra maneira: com o seu lindo ritual, o cheirinho bom a incenso e
a cera queimada, a missa do domingo que começava tarde, porque o senhor padre
vinha d~ dizer a missa no Monte e sempre um Salvé Rainha iniciado por ele e
depois acompanhado em colectivo pelo coro mais berrado e desafinado que eu ouvi
em dias de vida - mas tudo tão do povo, tão português... E no fim desta missa
pomposa a encomendação das almas, com dois tocheiros assentes num pano preto -
que só diferia na riqueza de cada um - e a meninagem de opas e caldeirinha,
fazendo rodado, num quase elu cá, tu lá> com as misteriosas coisas divinas!
A igreja era ainda para nós, as procissões com belas opas, a disputa das
lanternas, das campainhas, dos lugares no transporte dos pequenos andores ou
dos estandartes; como era também as cantigas perfumadas a pinheiro e rezina do
cancioneiro do Natal, com o seu bilinguismo como o nota Correia Lopes
Os
pastores de Belém
todos
juntos vão à lenha
p´ra
aquecer o Deus menino
que
nasceu na noite boína.
Enquanto o refrão nos deliciava
aos ouvidos puros e levados de música importada que agora se ouve no velho templo , em sinal
certo e seguro do progresso
Vamos a Belém , a Belém, a
Belenzinho, ou então as músicas marteladas
a roxo de tragédia que anunciavam as endoenças. A Igreja era ainda levar a
extrema unção, processional, àqueles que se estavam despedindo da vida efémera
para entrarem na vida eterna ou acompanhá-los à derradeira morada e assistir
aos grilos lancinantes que das janelas, das balcoadas ou das sacadas lançavam,
gritavam, sentidamente, os familiares. E era, ó se era, as apavorantes missões
dos padres espanhóis, cujo terror, ou domínio pelo terror, era tão grande que
vi eu um rico-sovina despejar uma nota novinha de vinte escudos (no tempo das
cor de rosa) na bandeja, perante a descrição terrificante do Inferno! Quando
entro em qualquer Igreja de província e vejo a Cruz da Santa Missão eu ainda
sinto um arrepio correr-me o corpo todo, pois me evado para as Santas Missões
que iam até Fozcoa!
Esta era a Igreja da infância e
da adolescência: uma Igreja feita de melancolia e de saudade. A que contracena
com «esta» não é menos bela, nem menos nobre nos seus 36, 1 5 melros de
comprido, por 13,74 de largo - para quem se interesse pelo seu tamanho real -
com sua frontaria em pedra lisa, sua porta em gótico florido, seu campanário
com três sineiras e dois sinos grandes, sua rosácea a ligar um conjunto de
sóbria beleza, acrescentada da decoração das armas reais portuguesas, e no
centro dos dois escudos a imagem da Virgem com o filho nos braços - a que
ninguém se lembrou ainda de chamar Pietá - mas a que dão o nome, bem nosso, de Nosso
Senhora do Pranto, orago do Templo; depois, as duas esferas armilares com a
cruz da Ordem de Cristo, emblema de El-Rei D. Manuel e a Flor de Liz, emblema
de D. João I. No umbral do lado da epístola a inscrição relativa à obra de
amplificação levada a efeito pelo Abade António Esteves Pereira. Esta a
fachada do Templo, tal qual ele é, tal qual o estou descrevendo agora.
No interior três naves assentes
em seis colunas de cantaria; uma grandiosa Capela Mor em talha doiraria e, seguidamente,
no corpo da Igreja quatro altares. Não quero considerar o quinto altar que se
pode ver na Paroquial fozcoense, monstruosidade - salvo o devido respeito -
cometida, não há muitos anos e mantida, mesmo depois das obras de restauro,
levadas a efeito pela Junta dos Monumentos
Nacionais!
Só me resta acrescentar que
esta Igreja de uma Vila de província possui um tecto lindíssimo em madeira, com
«vistosa pintura» - no dizer de Pinho Leal - em cujo centro se destaca a Virgem,
ladeada de figuras bíblicas. Claro está, que nestas não incluo a do Abade que
levou a efeito a amplificação do Templo, atrás referida, retrato ou vera
e1figi'e que fica perto do coro, devidamente legendado, com versículos do Eclesiastes.
Foi rica de alfaias a Paroquial
fozcoense, algumas que vinham do tempo do Rei D. Manuel. O que o tempo não
levou, levaram-no os franceses; e o que os franceses deixaram ficar, levou-o o
tempo, círculo vicioso em que se vão perdendo peças raríssimas do nosso
património artístico e religioso. O perdido esplendor das alfaias foi
acompanhado, infelizmente, pela consideração em que eram tidos os abades desta
vila que outrora, à semelhança dos cónegos, tinham o direito ao uso da murça e
do anel. Quem se recorda, agora, destas velharias? "
PASSOS DO CONCELHO
"Mas o caleidoscópio, por desejo
próprio, tem de mudar. Ao lado, no prolongamento do mesmo largo, airoso e desanuviado
das casas feias que o estragavam - o edifício dos Paços do Concelho, que é
assim como que a fisionomia inalterável! da povoação. Quando eu era pequeno era
lá que nas noites longas de Verão, brincava com meus camaradas, ao jogo do
esconde ou do pilha. Não o olhávamos, por certo, com o respeito a que Ele tinha
jús, respeito que só lhe manifestavam os homens de barbas, os quais, com
gravidade lhe chamavam e chamam-a Administração. A nós, criançada buliçosa, que
nos interessava que lá dentro estivessem todas as repartições públicas, desde o
Tribunal às Finanças? Eramos, então, seres livres: sem demandas ... e sem
dinheiro, duas coisas sem as quais o mundo não gira, as sociedades não progridem,
as nações não se engrandecem... Dinheiro e demandas 1 E, nós, ali, autênticos
bárbaros a rirmo-nos da justiça e mais pobres que os pobres que pedem na rua
...
Mas agora a coisa é diferente:
a casa tem que se lhe diga. Não é o prédio vasto, à sombra do qual brincamos,
corremos e vivemos a nossa vida passada. É o símbolo: a marca do passado, do
presente, do futuro - o rio de Heraclíto, em cujas águas não nos banhamos duas
vezes! A edificação, em si, é grandiosa, interessando, para já, bem pouco que a
sua construção fosse levada a efeito entre 185 7 e 1868. Interessa, sim, o que
ele representa: pois nele está Fozcoa , uma vila situada num planalto a 4 39
metros sobre o nível do mar, na margem esquerda do Coa, afluente do majestoso e
profundo Douro que se descobre cá de cima, no Senhor dos Aflitos, em curva
elegante, entre montes que reflectem o seu perfil, majestoso também, nas suas
águas ora verdes de esperança ora castanhas de húmus, augúrio de uma abundância
futura. Mais ou menos é isto que está na localização geográfica; e isto seria
pouco se os Paços do Concelho não representassem mais. Neles está o passado
nebuloso da fundação do povoado, depois da possível fragmentação do agregado
populacional do Castelo Velho, no Mante Meão, essa ingénua mas bem abrigada
defesa para os tempos da arma branca, de que lá restam pedras trabalhadas em
esquadria, inscrições e uma ou outra moeda romana que n povo topa e os
arqueólogos guardam.
Seria, possivelmente, este o
germen da Vila de que hoje falo, melhor, da Vila que hoje recordo: um arroio
toldado pela lenda que serve de história, quando a história não tem elementos
para dar explicação. Deste modo os habitantes ter-se-iam espalhado pelas
redondezas: pela Veiga, pelo Paço, pela Azinha te. Na Veiga, onde se ergue
velha capelinha em honra da Senhora do mesmo nome, teria sido encontrado um
esqueleto inteiro de proporções avantajadas, e uma estátua em jaspe branco que
dava parecenças a uma mulher. Nas escavações das redondezas - como o refere o
autor do Portugal Antigo e Moderno - «se tem encontrado ... ruirias de
edifícios e sepulturas antiquíssimas soterradas». A própria capelinha parece
ter sido paroquial, pois ainda nos fim do século XVIII pagava a censuaria «ao
cabido de Lamego corno as outras igrejas matrizes». Veneração arreigada lhe tem
o povo fozcoense que à sua Senhora da Veiga canta da seguinte forma os seus
milagres
Nossa
Senhora da Veiga
Fez
um milagre no Monte:
Um
menino pediu-lhe água
Logo
se abriu uma fonte
A
fontinha era d’ouro
A
água era de cheiro,
O
menino era santo
Filho de Deus verdadeiro
E tudo isto, poesia popular e música
do povo, história e lenda, sonho e realidade - está naquele edifício que são os
Paços do Concelho, imagem sublimada da biografia de um pequeno povo, evocação
do passado, testemunho do presente, garantia do futuro. "
O PASSADO
(…)"Da importância desta Vila,
no seu passado, falam eloquentemente os dados que Pinho Leal nos dá, no Portugal
Antigo e Moderno: «Em 1708 contava 60 fogos dentro dos muros do seu castelo e
500 nos arrabaldes - era abadia do padroado real - tinha Casa de Misericórdia, Hospital e 9
ermidas - feiras a 8 de Maio e 29 de Setembro - 1 ouvidor, 2 juízes ordinários,
1 dos órfãos com seu escrivão, 2 vereadores, 1 procurador do concelho, 1
escrivão da Câmara, 2 tabeliães, 2 almotacés, 1 capitão-mor, 1 sargento-mor com
duas companhias de ordenança e 1 companhia de auxiliares que obedecia à Praça
d'Almeida». « ..
Em 1768 era também abadia do padroado real - contava 581
fogos e rendia ao seu pároco 300$00 reis. A «História Eclesiástica da cidade e
bispado de Lamego, escrita, nos fins do último século por D. Joaquim d'Azevedo,
cónego grande de Santo Agostinho e abade reservatório de Sedavim, publicada em
1877, dedicou um belo artigo a Vile Nova de Fozcoa, a quem deu 862 fogos, com
3.268 habitantes e 600$00 reis de rendimento». De tudo isto - para além do
alargamento da área habitável e consequentes progressos materiais - resta um
julgado municipal, triste e entristecedor, que se mantém por manifesto espírito
de injustiça, apesar de seus habitantes clamarem aos astros o restabelecimento
da sua antiga, tradicional e justíssima Comarca, à semelhança daquela mulher do
povo, que em visita ministerial, saiu do passeio e destemidamente, na Rua de S.
Miguel., assim interpelando o ilustre visitante:
- Senhor Ministro, mande-nos a
nossa Comarca!
Pode mudar a imagem, pode mudar
a gravura, podem mesmo mudar os figurantes; uma constante, no entanto, fica, permanece, resiste e continua - a Terra!
- a Terra que semelhante àquele Castelo onde está colocado o relógio constitue
uma baliza de independência, do sentimento pessoal de independência desta
humanidade bravia. Bem que o Senhor D. Afonso V - que havia de ficar na
História com o cognome de o Africano - enovelado nas guerras com Castela pediu
aos íncolas que o construíssem, exactamente por causa dessas lutas em que se
achava metido ... Bem lhes ofereceu - a ver se erguiam ao céu a famigerada
fortaleza - privilégios, entre os quais o de os fozcoenses não pagarem direito
de alcaideria, à semelhança do que acontecia com os habitantes de Freixo de
Espada à Cinta, bem aproximados dos de ali. Nem assim se resolveram; nem, tão
pouco, a autoridade régia os convenceu!... Fizeram-no quando dele, muito bem,
sentiram necessidade e só tenho que sublinhar a independência de outrora, o à
vontade perante os grandes que ainda hoje se mantém, pela graça, pela
pertinácia dos homens."
A TÊMPERA DAS SUAS GENTES
"Mas não é só esta virtude da
raça, que se mantém, permanece e... ameaça continuar. Vã0 lá, estejam .Já e
estudem esta gente. Observem-nos no seu habitat ou nas imensas colónias
espalhadas pelo país, pelo seu património ultramarino, ou pelo Brasil; são
sempre os mesmos, com um sentido - fora do seu meio - muito mais apurado da
responsabilidade.
Deste modo, as virtudes vêm ao de cima: a da lealdade - hoje
quase esquecida... - a da bravura, do destemor, do apego brutal ao trabalho, da
.Juta diária com a aspereza da terra, do respeito pela memória ou pela
obediência aos maiores, da seriedade das mulheres a ponto de serem raríssimos
os casos de adultério ou de prostituição, qualidades ou virtudes, que são
autênticas constantes que a cinza do tempo não conseguiu extinguir ou sepultar,
corno extinguiu e sepultou a comarca a fozcoense, como extinguiu e sepultou a
murça e o anel dos seus abades, como sepultou e extinguiu, definitivamente, as
ricas alfaias de que a Igreja era senhora e proprietária. No meio de tantas
coisas más - valha-nos ao menos isso!
Povo de lavradores, a terra e
os bicho> moldaram a vida e o carácter desta gente, E verdadeiramente
empolgante a possibilidade, destas almas de Deus no trabalho esgotante de
transformação a arroteamento do solo. Pode dizer-se - sem nada exagerar - que
Deus, por certo criou toda esta região; mas o resto, as culturas, o transformar
encostas escalvadas em vinhas verdejantes; o arrotear o quintalório florido de
vegetais na canícula do verão; sem lucro palpável ou possível, tratar
superficialmente a terra para o plantio do sumagre que evitará os profundos
trabalhos naturais da erosão, dado que ninguém já se importa de tal arbusto
para os curtumes; limpar os olivais, cavá-los e olhar os céus sem fim e sem
nome a vier se o ano está ou não de azeite, e depois, por madrugadas polares ir
varejar, apanhar e rebuscar a azeitona negra como um tição que em vez de
queimar a polpa digital com calores a queima com geadas; adubar, lavrar e
semear o trigo, a cevada, o centeio mondá-lo, duas vezes, ao diante, quando as favecas, os trevos e os pimpilros doem mais nos rins e nos lombos, do que as
palavras ásperas dos capatazes -
Fazer ao diante a ceifa com sedes que vem da
alma, antes de estalarem o corpo e, seguidamente, na eira, esperar pela brisa
que ajudará a alimpar o cereal, depois de batido e desencamisado: ir, ainda o
sol vem nos quintos, fazer o varejar da amêndoa por uma solina capaz de
meningitar qualquer peralta caído da cidade e sentir no corpo toda a sarna
daqueles piolhinhos verdes mais incómodos, que a solina, a sede e o cansaço;
fazer a vindima sem literatura, sem documentários cinematográficos, sem
folclores fáceis, como o fiz notar, há
meses, ao meu amigo Rooney Pelletier da B. B. C. de Londres; arriscar-se ao impossível,
desde a morte, à cegueira ou à inaptidão para toda a vida, como os que trabalham
a pedra dos esteios do Poio, espalhada, em seguida, sem perigo por todo o país;
pesquisar a água de beber ou a água para regar e depois esperar por ela, como
moço casadoiro por namorada aperaltada - isso tudo, isto tudo - só pode ser
feito, não me digam que não, pelos daqui! "
SUORES E FRUTOS
"A riqueza não lhes caiu do Céu
- pródigo em calores infernais ou em frios polares - mas avaro em tudo o resto.
O pão de cada dia - o pão nosso que a Deus todos os dias rogam nos dai hoje
vem-lhes da terra, a terra que biblicamente amanham com o suor de seus rostos.
Bem sei - e de mais, quem o não sabe? – que eventualmente há o minério,
designação geral dada à riqueza que jaz no mais recôndito seio da terra, quando
a humanidade em conjunto perde a cabeça e decide derimir, pelo extermínio,
aqueles problemas que podiam ser resolvidos pela boa vontade e pela boa fé;
isso é, em nossos dias, quase cíclico.
E também houve, em tempos que já lá vão
e não tornam, a montagem da linha férrea que à Vila trouxe proventos, então, e
até - quem o diria? ! - a criação de mais um hotel (assim se chamavam às casas
de pasto) naquela terra sem turismo visível. Mas tudo isto são gotas de água,
mais ou menos passadas, para mitigarem uma sêde ardente. Constante, constante
real e verdadeira só a terra; daí que não espante a ninguém que o nome de
tantas famílias seja, com exactidão, o nome dos produtos mais comuns à
sementeira anual: Trigo, Centeio, Cevada, Serôdio, por exemplo, homologação que
ultrapassa a simples e possível influência judaica.
Na realidade, se não fosse a
terra, o que seria desta gente toda que desconhece - e que bem que isso é - os
processos malthusianos de obstar à continuidade e proliferação da espécie? Suas
velhas indústrias estrebucham na agonia, se é o mesmo que não morreram já. Os
carretões foram, em grande parte, substituídos pela velocidade, comodidade,
rapidez e baixo preço da camionagem; a manufatura da cordoaria - criação de larga
visão de fomento do Marquês de Pombal, perante a riqueza da veiga da Vilariça
que produzia cânhamo tão bom e tão abundantemente que nos libertava das
onerações advindas da importação do cordame da Rússia - à semelhança da de
Moncorvo, não pôde competir com a fabricação mecanizada e em série de outros
centros industriais, nascidos e florescentes posteriormente; o fabrico do
calçado grosso par a os homens da lavoura não tarda que estiole também ou então
desapareça, dado que não aguentará a competição com os centros fabriqueiros,
onde a máquina substituiu o braço, e o labor directo do homem, com vantagens -
sem dúvida - diversas; a própria preparação do sumaagre, para a extinta
indústria de costumes regionais, ou para a restante .laboração fica dispendiosa
se a compararmos com o preço de seus substitutos químicos, modernos.
O LEGADO RELIGIOSO
Creio - desta maneira - que não
exagerei ao afirmar a constância da terra, ficando como subsidiários deste
grande, deste ingente esforço, aqueles que continuam fabricando os típicos
«carros de varas» em negrilho, ou então, aqueles outros que continuam
fabricando os arreios para o gado cavalar ou seus híbridos e o apeiro para o
gado bovino. Porque, repito, isso é ainda uma faceta das indústrias que vivem
directamente ligadas à terra. Por esta razão, as capelinhas estreitamente
ungidas às antigas corporações serão lembradas, já não pela corporação em si,
mas pelos fiéis que recorram a S. Sebastião caso haja peste, sejam sapateiros
ou não; da mesma forma pelos que rezam ao Santo António, sem serem cordoeiros;
ao mesmo tempo que os almocreves, hoje desaparecidos, não irão fazer a festa da
Senhora do Amparo; e só à Santa Bárbara os cavadores e os outros que o não são,
irão suplicar a sua protecção para as searas ou para as colheitas diversas; os
estudantes mal se lembram que a sua festa devia ser feita a Santa Luzia, na
capelinha de Nossa Senhora da Aldeia Nova, e os rústicos moleiros, já tão
raros, não farão o festejo de S. Pedro, seu patrono, pois que se o cereal não
for moído a tempo o freguês pode alancar para as instalações modernas da fábrica;
a própria capela de Nossa Senhora da Conceiçâo - que «foi matriz dum pequeno
curato do chantre de Lamego anexo à Igreja (abadia) de Numâo” só uma vez por
outra fará ouvir seu característico toque de sino, anunciando missa em
cumprimento de qualquer voto avulso ou avulsa, não menos avulsa, promessa.
Só ficará
sempre acompanhada, sempre visitada, sempre com a presença do calor humano a
capelinha do Senhor dos Aflitos, ao cimo do caminho da Costa, por ser lugar
aprazível, passeio obrigatório e mirante natural de uma beleza tão grande que
terá - em todas as épocas, de baixo das suas árvores a permanência da
assiduidade que dali vai observar a majestade do rio Douro, a alegria
verdejante do Vale que se espreguiça ao fundo da paisagem, ou então a rotunda
saliência dos montes que esbracejam por todos os lados para onde o observador
se volte.
Ao menos que perdida a função
das velhas corporações essas capelas, testemunho da religiosidade antiga, não
sejam abandonadas ao camartelo do tempo, que no seu bater surdo e contínuo é
prenúncio daquela ruína que antecede a morte, a morte que sepultou para sempre
no seu manto de gelo e de esquecimento - as capelas d" $. Vicente, de S.
Miguel, de Nossa Senhora da Encarnação e da Expectação - cuja memória de
existência se perde pelos caminhos da memória humana.
TERRA DE JUDEUS
É costume - e novamente mudo de
imagem no meu brinquedo sentimental - dizer-se que Foz Coa é terra de judeus.
Não nego a afirmativa, nem tão pouco pretenderei justificar ou desculpar a
terra de epíteto, por muito julgado infamante. Sim, em Foz Côa houve judeus e a
sua permanência em nada afectou a vida do povoado. Não sei se muitas das
virtudes dos autóctones serão derivadas da miscigenação, s·~ do exemplo, se
mesmo da compita com os filhos de Israel. De qualquer forma, em região onde os
tipos humanos são de físico meão, cabelos negros e faces morenas - aparecem
homens loiros ou ruivos, de olhos atravessados entre o azul e o verde - olhos
de gato, diz a gente de lá - com estatura avantajada e fora do vulgar. De onde
vieram estes tipos humanos tão diferentes do comum da generalidade?
De qualquer forma a permanência
judaica em nada prejudicou a população fozcoense ; a uma família de Vila Nova
de Fozcoa está ligado Ribeiro Sanches - sábio de renome científico que não
necessita de mais -encómios - a quem se deve a revolução pombalina nos estudos
universitários de Coimbra. Quis só citar este nome: o de um judeu que não sendo
de Fozcoa a ela está ligado pelos laços do sangue, o qual honrou não só a raça
a que pertencia, como a nação e a cultura de Portugal.
FESTIVIDADES
(...) Festividades
colectivas que hoje existam ainda, com a pompa de outrora, podemos dizer que se
cifram às da Semana Santa - Endoenças -, Corpus Christi e Nossa Senhora da
Veiga que em 8 de Setembro era costume celebrar na Igreja Matriz, ficando os
festejos de Março para a sua Capela própria. Hoje o povo acorre aos festejos da
Veiga, que são em boa verdade festejos que honram não só a Virgem que o povo
adora, mas ainda a piedade que se mantém viva, geração após geração
Atiro com meus olhos para
longe. Andaram
Creio que quem tenha andado
pelos vinhedos durienses, pelos vinhedos bairradinos, pelas vinhas-hortas do
Minho, deve ter reparado numas pedras onde as videiras trepam e se engastalham,
pedra negra, mas negra mesmo apesar da diversidade dos tamanhos. É a pedra tir
ada das entranhas do monte do Poio, pedra xistosa, que se «rasga» - segundo o
vocabulário popular - como costureira adestrada rasgará uma peça de riscado ou
de qualquer outro tecido de algodão.
Essa pedra foi uma das grandes
riquezas regionais; hoje, não o é tanto; mas, apesar disso, continua a sua extracção
em menor escala e volume, alimentando o escasso mercado do plantio ou renovação
da vinha. Por vezes a importação faz-se mesmo por luxo: o endinheirado que
desejou ter o seu jardim hortícola, com ademanes de ineditismo. No entanto
quantas lutas, paixões, mesmo ódios, a pedra negra do Poio não trouxe consigo
... Mas o tempo esbateu todos esses maus sentimentos; como já esquecidas estão
as vítimas das explosões, na extracção da pedra. Existia ainda há anos, um
velho distribuidor de jornais - o Chapinha - que era um exemplo vivo desse
passado turbulento, Cego de ambos os olhos pela explosão extemporânea, derivou
as suas actividades para a distribuição dos periódicos ...
O POIO
Não se envolveu na
comum exploração da piedade alheia. Essa máscara viva, humana do passado, que
eu recordo aqui, ao recordar esse homem que era meu amigo, como o fora decorreu
Pai e de meu Avô, a cujo serviço se inutilizara. A ele perguntei muitas vezes
como era lá feito o trabalho, evocando aqueles poços fundos e negros que eu
vira como turista e que ele vivia, como mutilado. Fugia às respostas,
divagava... E sou eu que, agora, aqui - evoco os montantes, trabalhadores que
habitualmente se ocupavam na extracção da pedra das pedreiras, segundo as
instruções e medidas que recebiam dos mestres de obras; os apare/fiadores ou
canteiros que depois «trabalham e afeiçoam a pedra» e, finalmente, os
assentantes que colocavam e assentavam a pedra nos edifícios, quando a pedra a
eles era destinada. Passado longínquo de um corporativismo ingénuo, popular e
altamente marcado no topo, da sua hierarquia por mestres e contra-mestres.
'Depois de ter feito esta viagem
à volta da minha curta vida, interseccionando-a com a vida que eu sei do povo e
a que o sangue me liga, eu desejo evocar, em último momento de melancólica
recordação, as tardes que eu passava no campo, enquanto uma brisa de 'Verão,
suave e benéfica, acariciava a carapinha das árvores alevantando ao ar as
pequeninas coisas que se deixam envolver no seu abraço acariciante. Era então
junto ao poço do Campo, quase pegado aos esteios do Poio se espreguiçavam os
ramos verdes do sumagre, cuja estiolação eu testemunhava tarde a tarde. Eu via
o verde vivo transformar-se na mesma cor, mas agora doentia e parda; depois
assistia à sua mirragem, à sua morte para dar origem ao produto útil, sob as
pancadas metódicas dos mangoais.
A miudagem pobre trazia caixotes vazios, onde
a sardinha salgada tinha ocupado lugar, ·e enchia"' os dos gravetes que
sobravam daquela flagelação, os quais serviriam para aquecer a ceia do dia a
dia, quando não de reserva futuramente combustível, para quem não possuía
outros haveres que não fossem os iguais aos lírios do campo de que Jesus falou
no sermão das Bem-aventuranças ...
Mal sabia eu - e nunca vi - que
o sumagre - seria depois de batido transportado para as atafonas, onde a sua
existência seria reduzida a pó, aquele pó a que todos estamos condenados, mesmo
considerando a lei da conservação da matéria ...
Chego ao fim desta minha
jornada pela terra que eu amo apaixonadamente e por cujo amor vos fiz perder
esta noite, num monólogo monocórdio, de que eu fui principal agente e autor.
Acreditai que valeria a pena, quando dispusésseis de tempo, irdes até lá;
viverdes com aquele povo, hospitaleiro e bom, ainda que vertical e duro como o
diamante que é capaz de quebrar, mas nâo há exemplo de que tenha torcido. A sua
verticalidade pode dar-lhe o cariz com que o definiu o já citado Pinho Leal:
Vila hospitaleira, sem dúvida,
«mas esteve sempre dividida em partidos exaltados que à mais leve provocação se
não poupam a hostilidades de toda a ordem, - vinganças, perseguições, pancadas,
facadas, tiros, incêndios e mortes!» Certamente aclimatado ao sedativo verde
minhoto, Pinho Leal esqueceu-se da braveza desta paisagem sem repetições;
disperso pelas muitas terras que descreveu, faltou-lhe a perspectiva para cada
uma; experimentado na doblez do carácter dos homens que conheceu e com quem
contactou, sentiu-se estranho perante esta humanidade diferente; historiando ao
de leve o Portugal Antigo e Moderno, relegou, com certeza o Portugal eterno, na
perenidade das virtudes marcadas da ruça. Sobretudo não se lembrou de duas
constantes: o homem e a terra. Esta moldando o seu habitante ao seu clima;
aquele afeiçoando cada contorno à sua natural maneira de ser, mas ambos
constituindo uma realidade que se completa, que se interpenetra, que é um todo
que não pode ser estudado em fracções, uma de cada vez.
E pronto: estou no fim do meu
trajecto lírico, sentimental e humano. As minhas últimas palavras estão a soar,
para alívio de quem me escuta e para desempenho da minha missão pessoal.
Desculpai-me tão enfadonho fim de semana, perdoai as asperezas da minha voz, o
irrequietismo da minha imaginação, o meu pouco saber, a minha dispersão e até a
ausência das coisas que vos queria dizer e não disse. Se fordes tão benévolos
que possais esquecer-me e esquecer esta noite em que' vos trouxe aqui, não por
méritos próprios mas por benevolência e amizade alheia, eu me sentirei
absolvido e compensado. E mais absolvido e compensado me sentirei se um dia
recordardes a minha terra como eu a quero recordar nesta síntese final:
ALGUNS DOS ADMIRADORES DE AMÂNDIO CÉSAR- NÃO DEIXARAM, TODAVIA, DE ELOGIAR A SUA OBRA E PERSONALIDADE
10.8.07- 20 anos depois: Amândio César, Presente!
Foi Robert Brasillach que disse: “Daqui a 20 anos ouvirão outra vez falar de nós”. E
acertava em cheio. O mesmo se passa com Amândio César. Por essa e
outras razões aqui e agora se lembra, em jeito de justíssima homenagem,
mais um proscrito da Cultura portuguesa. Logo, razão de fundo para não
querer nem poder deixar passar em claro o vigésimo aniversário da morte
de Amândio César.
Conheci as suas vida e obras por mão própria - a poesia (Batuque de Guerra, Não posso dizer adeus às armas e País em fuga - Poemas de um tempo que foi, entre outras), a novela, o ensaio e não esquecendo a magnífica tradução da obra de Curzio Malaparte, Kaputt - e pela voz dos seus amigos de António José de Brito, de Rodrigo Emílio, Carlos Eduardo Soveral, António Manuel Couto Viana, Goulart Nogueira e Caetano de Mello Beirão.
Não
tive o privilégio nem a honra de o ter conhecido pessoalmente o que me
enriqueceria na vertente cultural dado ambos sermos admiradores de
Robert Brasillach - sobre quem fez uma extraordinária resenha da obra literária do escritor francês e que foi publicada na revista Tempo Presente; de António Sardinha - que juntamente com Francisco da Cunha Leão prefaciou a Antologia Poética e muito especialmente doseu
Amigo Alfredo Pimenta que honrou com vários estudos sobre o Mestre
vimaranense e com a antologia poética "Alfredo Pimenta - Terra e
Poesia". Amândio César, Presente!