Jorge Trabulo Marques
Algures no Golfo da Guiné, 25 de Novembro de 1975
À medida que as forças me vão fraquejando, são mais os pensamentos que me assolam de que as palavras que expresso para o meu diário. Embora com os olhos pregados nos contornos de terra à vista, assim vai decorrer mais um dia perdido no mar, sem todavia a poder alcançar (mas só ao 38ª dia a irei alcançar). Mais propenso a pensar de que a expressar as minhas emoções ou observações para o modesto gravador, que religiosamente guardo num simples contentor de plástico, que em terra servira de caixote de lixo – Estou completamente desligado do resto do mundo. A bússola permite-me saber a direcção que tomo mas não sei onde estou. Vou ao sabor dos ventos e das correntes. Que nem sempre me levam pelo melhor rumo. O remo improvisado, continua a ser pouco ou nada eficaz. Não posso comunicar seja com quem for. Senão com a vontade de Deus. E também não tenho a certeza se me vê ou se me ouve. Mas eu existo, e, a bem dizer, sou um náufrago. E o drama que vai no coração de quem anda perdido no mar, é intraduzível em palavras - Aqui ficam, pois, as que foram faladas (para o diário) e alguns dos pensamentos que ficaram guardados na minha memória.
Obrigado minha canoa!.. Sou um retrato desfigurado de mim mesmo mas não me sinto derrotado. Ainda não me levaste a terra mas antevejo esse momento de suprema felicidade... Sinto um encantamento inexprimível, inefável!... Porém, começa a sentir-se muito calor.....Mas, por agora, estou bem.....Dá-me a impressão que até já me sararam as feridas e me passaram as dores do meu corpo. Estou mais tranquilo. Vejo que tenho aqui a terra, relativamente próxima. ...Oh, meu pobre coração!.. Tão maltratado tens sido!.... Depois de tanta angústia e de tanta incerteza, como esta visão te descomprimi e tranquiliza um pouco mais!...
Porém, enquanto a noite me não cobre pela cortina do seu espesso véu e me não turva meus olhos ansiosos, os inunda de sons e silêncios noturnos, evoco aqui um poema de José Régio, creio que muito a propósito, num momento em que me sinto levado a vaguear por um imenso oceano de pemubrosas dúvidas.
O tempo refrescou, a noite ondula negra em torno de mim. .Vogo sobre um mar de trevas e o que eu vejo em redor é um manto de escuridão. Lá, no alto, surge o brilho tímido das primeiras estrelas – E, quem sabe, se talvez alguma me sirva agora de guia e de protecção. Oh, sim... Mas, eestando elas, tão longínquas? ....
À medida que as forças me vão fraquejando, são mais os pensamentos que me assolam de que as palavras que expresso para o meu diário. Embora com os olhos pregados nos contornos de terra à vista, assim vai decorrer mais um dia perdido no mar, sem todavia a poder alcançar (mas só ao 38ª dia a irei alcançar). Mais propenso a pensar de que a expressar as minhas emoções ou observações para o modesto gravador, que religiosamente guardo num simples contentor de plástico, que em terra servira de caixote de lixo – Estou completamente desligado do resto do mundo. A bússola permite-me saber a direcção que tomo mas não sei onde estou. Vou ao sabor dos ventos e das correntes. Que nem sempre me levam pelo melhor rumo. O remo improvisado, continua a ser pouco ou nada eficaz. Não posso comunicar seja com quem for. Senão com a vontade de Deus. E também não tenho a certeza se me vê ou se me ouve. Mas eu existo, e, a bem dizer, sou um náufrago. E o drama que vai no coração de quem anda perdido no mar, é intraduzível em palavras - Aqui ficam, pois, as que foram faladas (para o diário) e alguns dos pensamentos que ficaram guardados na minha memória.
Diário de Bordo 1 Já é manhã do 36ª dia! Esteve uma noite esplêndida!..Magnífica! Não choveu... A manhã apresenta-se serena mas muito nublada!...Está aqui à minha frente uma serra muito alta!!...Muito comprida!!...Devo estar entre os Camarões e a Nigéria...Mas ainda falta um bocadito...
O mar é um imenso tapete calmo, que cintila como um espelho de luz. . Manhã radiante! Não corre a mais leve aragem... Nem um sopro sequer a agitá-lo. A canoa "São Tomé - Yon Gato" mal se move. Também ela parece querer repousar das muitas pancadas, dos maus tratos que tem sofrido... Que, inexplicavelmente, tem suportado, com tanta indiferença e resignação...Como se levasse no seu bojo a carga mais preciosa deste mundo, que fosse imprescindível salvaguardar.
OLHA O CÉU E REZA A DEUS TUA ORAÇÃO, QUE TÃO IMENSO E DISTANTE É, CUJO TETO É O TEU ÚNICO ABRIGO E O VASTO MAR O TEU ÚNICO CAMINHO EM TODOS OS SENTIDOS DO CIRCULAR HORIZONTE
Obrigado minha canoa!.. Sou um retrato desfigurado de mim mesmo mas não me sinto derrotado. Ainda não me levaste a terra mas antevejo esse momento de suprema felicidade... Sinto um encantamento inexprimível, inefável!... Porém, começa a sentir-se muito calor.....Mas, por agora, estou bem.....Dá-me a impressão que até já me sararam as feridas e me passaram as dores do meu corpo. Estou mais tranquilo. Vejo que tenho aqui a terra, relativamente próxima. ...Oh, meu pobre coração!.. Tão maltratado tens sido!.... Depois de tanta angústia e de tanta incerteza, como esta visão te descomprimi e tranquiliza um pouco mais!...
Diário de Bordo 2 Esta amanhã, a moral pode considerar-se elevadíssima! Comi a ave que ontem apanhei... Cozia-a com um toco de uma vela de cera que ainda aí tinha... E apanhei mais um peixito...Tenho aqui a costa de África já muito próxima... e montanhosa para meu espanto....
De facto, estava convencido de que a orla da costa fosse mais baixa, como a da Nigéria, onde fui parar da outra vez... Mas não... É extraordinariamente acidentada ... Já pensei que fosse a Ilha de Fernando Pó...Mas não deve ser...Dá-me a impressão que se prolonga indefinidamente, formando como que uma imensa bacia que se destaca de uma enorme massa verde escura....Ora, se fosse uma ilha, provavelmente teria outra configuração... Porém, as nuvens que pousam nas suas montanhas, que ora cobrem ou descobrem os seus perfis, fazem-me uma certa confusão...Veremos, quando lá chegar...
Diário de Bordo 3 Serão neste momento, uma ou duas da tarde... Tem estado um calor sufocante!...Uma calmaria bastante inquietante!...Vejo perfeitamente à minha frente a nordeste a costa de África!... Que se eleva numa enorme serra! Toda coberta de vegetação, encimada por nuvens...
Agora começa a correr uma ligeira brisa... Entretanto, vou ver se consigo velejar qualquer coisa...
Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico, tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..
Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico, tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..
O céu está manchado de azul e de branco.. E, sob aqueles vultos de névoas, descobre-se um verde escuro, luzidio .... Quando poderei lá chegar?!... Tão próximos me parecem aqueles contornos, todavia, fisicamente, tão inacessíveis!
Que pena a força misteriosa das correntes e as ninfas que regem o carinhoso bafo das brisas me não arrastarem para lá...O pano erguido no tosco mastro, mal se mexe, não drapeja. Parece estar ainda mais triste de que eu.
Sim, estou ansioso e preocupado. O tempo passa... As horas correm lentas mas vão seguindo o seu curso... Já não faz tanto calor mas mantém-se a mesma calmaria ... O sol declina, já baixo e meio pálido a poente ... Não tardará a desaparecer... O crepúsculo, aqui é muito rápido...E, eu, na iminência de já não alcançar a tão desejada costa de África... Depois vem a noite... ...Como será a noite?!.. Esta é sempre a minha maior incerteza... A interrogação que faço todos os dias ao anoitecer... Mais uma vez tenho que deixar o meu destino à mercê dos caprichos dos ventos e das correntes... Oh!... esta vontade!.. Esta ânsia de aportar a uma praia e pisar as suas areias, ouvir o sonoro marulhar das ondas (tão diferente do chape-chape no costado da piroga, que já quase me enlouquece) a desfazerem-se na perpétua maresia sonora daquela beberagem espumosa... Oh, brilho divino!...Desejava que ao menos me aproximasses à luz do dia para que não fosse enrolado na rebentação ou atirado contra qualquer rochedo... Quando fiz a travessia de São Tomé ao Príncipe, eu, ao pôr do sol, estava aproximar-me de uma falésia. E vi que ao largo estava a formar-se um tornado. Não tive outro remédio senão afastar-me daquele precipício, voltar costas à rochosa e íngreme encosta. e enfrentar a tempestade. Se me apanhasse ali, não tinha salvação possível... Só Deus sabe os trabalhos que não tive durante aquela tormentosa noite!... Os relâmpagos rasgavam continuamente a escuridão, caíam faíscas por todo o lado. E, o plâncton, que a escuridão trazia à superfície, parecia deixar a espuma das vagas em chama, arder em fogo!
Talvez à vida, talvez à morte, não sei..Não sei, efectivamente, onde vou chegando. Mas não ignoro, no entanto, que terei de chegar, urgentemente, a qualquer parte . Porque, o mísero estado em que me encontro, quase esgotado de forças, dificilmente me permitirá que possa adiar a minha sobrevivência por mais tempo, que reuna forças para chegar mais longe.
Por isso, procuro avaliar no lusco-fusco do entardecer, tento decifrar os passos que ainda terei de avançar ou de percorrer... Indago e perscruto, através da morosidade inquietante que me angustia e me arrasta, o que me aguardará para lá dos confins da imensa e misteriosa planura cinzenta, pergunto-me a que ponto do horizonte poderei ser levado..
O tempo refrescou, a noite ondula negra em torno de mim. .Vogo sobre um mar de trevas e o que eu vejo em redor é um manto de escuridão. Lá, no alto, surge o brilho tímido das primeiras estrelas – E, quem sabe, se talvez alguma me sirva agora de guia e de protecção. Oh, sim... Mas, eestando elas, tão longínquas? ....
Diário de Bordo 4 - Neste momento são oito horas da noite! Deverão ser cerca das oito hora das noite! Toda a tarde de manhã não houve vento!... Só agora é que apareceu! Estou a velejar!... Estou-me a precipitar como um suicida!.. Não vejo absolutamente nada! Não sei se estou perto, se estou longe da terra!... Mas tenho fome!!... Não posso demorar mais tempo!...
A canoa voa velozmente, qual pássaro notívago. A vela mal se distingue por entre o emaranhado das sombras que preenchem o vazio da noite, no entanto, noto que vai enfunada e que estica retesadamente a corda da escota.
Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma. Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona onde deixei de ver os contornos de terra. Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que posso navegar. Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto, não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.
Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma. Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona onde deixei de ver os contornos de terra. Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que posso navegar. Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto, não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.
O céu continua carregado de nuvens escuríssimas. Atmosfera densa. Pesadíssimo e baixo o tecto que quase me submerge....A canoa galopa, vai galopando, vai sulcando temerariamente a negra vastidão, qual pássaro noctívago de peito aberto ao desconhecido. Nunca, como esta noite, naveguei com tão porfiada determinação. Nada me intimida. Ou vida ou morte. Vou disposto arriscar tudo. Mesmo a ter que correr o risco da canoa ser atirada para qualquer escolho, negro rochedo ou linha de rebentação.
Navego, talvez há quatro ou cinco horas, vergado sobre o remo. Velejando continuamente às cegas, alheio a todos os perigos. Tão cansado já vou do esforço do remo, que tenho a sensação de estar possuído por uma certa vertigem,... Que não é a canoa que navega à tona de uma vasta e negra planície, mas que sou eu que deslizo e me precipito por uma escuríssima colina abaixo. Não faço a menor ideia para onde vou, que distância me separa de um porto de abrigo. A única coisa de que me apercebo é o ressoar de um certo bruá, que parece vir dos confins da massa escura para onde me dirijo.
Os meus ouvidos funcionam como um autêntico radar - São também os meus olhos. Procuram decifrar todos os ruídos dos súbitos movimentos, todas as ressonâncias, provenientes do barulho das vagas que se enrolam e espumam nas proximidades, as pancadas que se abatem contra o costado,. Avaliam todos os sons, vão sincronizados com o rumorejar noturno do mar.
É, todavia, cada vez mais complicado segurar o remo, o vento é forte e inconstante e vai-se-me tornando difícil saber qual o verdadeiro rumo que estou a tomar. Há muito desisti de olhar para a bússola. Ora navego para um lado ora navego para outro. Tento evitar que a canoa fique completamente à deriva ou atravessada à vaga. Estou fisicamente esgotado e no limiar da minha resistência. A par da fraqueza, invade-me uma enorme sonolência, a que não quero ceder.
Finalmente, encarando a noite e todos os perigos, sem desfalecimento, sem pregar olho, dou-me conta dos primeiros alvores da madrugada. - O vento afrouxa, a vela fica panda e, para minha maior decepção, a claridade do novo dia, faz-me descobrir que, em vez de me ter aproximado dos perfis e recortes daquelas encostas montanhosas, que vira de véspera, afinal, constato de que nada me servira tamanho esforço – Fico com a sensação de que estou noutra posição, ainda mais ao largo. Exausto, aproveito então para me deitar um pouco sobre o fundo duro e encharcado da canoa e descansar – Agora, completamente alheio ao que desse e viesse.... Na esperança, porém, de que o novo dia me conduza a bom porto.
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