Esse era um outro tempo: em que se lavravam todos os bocadinhos - Hoje, há recurso ao trator e a uma agricultura mais mecanizada - Mas há que não esquecer os rostos, sobretudo das mulheres, daqueles dias duroa da geira de sol a sol pelas ladeiras do vale do Côa
Mulheres
trabalhadeiras vergadas à enxada pró pão de cada dia! Por colinas e ladeiras de
Muxagata, cavando e lavrando a vinha. Sulcando o xisto onde a raiz da videira
vai buscar o melhor elixir. O tempo já é frio, mais de invernia e despedida à
aguarela outonal Mesmo assim, ao cansaço do vergar a espinha, ainda escapa
sorriso Sob o seio de claríssimas nuvens, irradiando divino fulgor, encanto!
Suaves e íngremes ladeiras, sulcadas desde as mais remotas eras! Por hábeis
artistas do Paleolítico, na Ribeira dos Piscos de outrora! Douradas e lindas
terras da minha avó materna, a Maria Morgado! Percorridas por rebanhos de gado,
onde férteis hortas, havia! Desde os primores do belo tomate, ao repolho, à
fava e à ervilha! - Mas tudo é já memória do passado, pra saudade e tristeza
minha!
Resta-nos o perfume da giesta, da amendoeira, do freixo e amieiro, do
rosmaninho, sabugueiro, salgueiro, choupo, hortelã brava! Do cheiro da flor da
oliveira, pereira, macieira e mato rasteiro! Assim como o belo canto da
passarada, o trinado da cotovia, a inconfundível sonoridade da perdiz e do
poético rouxinol do piar agourento do mocho, do corvo, do grifo e da águia ao
soturno noitibó, quebrado pelo repetitivo rolhar mole da pomba nos pombais e o
cantar adormecido da rola nos olivais. – Tudo esses abertos espaços, sob amplo
teto místico e puro do ar, quando ali volto, ainda me prendem e fascinam mais o
meu olhar
Tu, idosa mulher que pegas no rosário e imploras tuas orações
À medida que as forças me vão fraquejando, são mais os pensamentos que me assolam de que as palavras que expresso para o meu diário. Embora com os olhos pregados nos contornos de terra à vista, assim vai decorrer mais um dia perdido no mar, sem todavia a poder alcançar (mas só ao 38ª dia a irei alcançar). Mais propenso a pensar de que a expressar as minhas emoções ou observações para o modesto gravador, que religiosamente guardo num simples contentor de plástico, que em terra servira de caixote de lixo – Estou completamente desligado do resto do mundo. A bússola permite-me saber a direcção que tomo mas não sei onde estou. Vou ao sabor dos ventos e das correntes. Que nem sempre me levam pelo melhor rumo. O remo improvisado, continua a ser pouco ou nada eficaz. Não posso comunicar seja com quem for. Senão com a vontade de Deus. E também não tenho a certeza se me vê ou se me ouve. Mas eu existo, e, a bem dizer, sou um náufrago. E o drama que vai no coração de quem anda perdido no mar, é intraduzível em palavras - Aqui ficam, pois, as que foram faladas (para o diário) e alguns dos pensamentos que ficaram guardados na minha memória.
Diário de Bordo1 Já é manhã do 36ª dia! Esteve uma noite esplêndida!..Magnífica! Não choveu... A manhã apresenta-se serena mas muito nublada!...Está aqui à minha frente uma serra muito alta!!...Muito comprida!!...Devo estar entre os Camarões e a Nigéria...Mas ainda falta um bocadito...
O mar é um imenso tapete calmo, que cintila como um espelho de luz. . Manhã radiante! Não corre a mais leve aragem... Nem um sopro sequer a agitá-lo. A canoa "São Tomé - Yon Gato" mal se move. Também ela parece querer repousar das muitas pancadas, dos maus tratos que tem sofrido... Que, inexplicavelmente, tem suportado, com tanta indiferença e resignação...Como se levasse no seu bojo a carga mais preciosa deste mundo, que fosse imprescindível salvaguardar.
OLHA O CÉU E REZA A DEUS TUA ORAÇÃO, QUE TÃO IMENSO E DISTANTE É, CUJO TETO É O TEU ÚNICO ABRIGO E O VASTO MAR O TEU ÚNICO CAMINHO EM TODOS OS SENTIDOS DO CIRCULAR HORIZONTE
Obrigado minha canoa!.. Sou um retrato desfigurado de mim mesmo mas não me sinto derrotado. Ainda não me levaste a terra mas antevejo esse momento de suprema felicidade... Sinto um encantamento inexprimível, inefável!... Porém, começa a sentir-se muito calor.....Mas, por agora, estou bem.....Dá-me a impressão que até já me sararam as feridas e me passaram as dores do meu corpo. Estou mais tranquilo. Vejo que tenho aqui a terra, relativamente próxima. ...Oh, meu pobre coração!.. Tão maltratado tens sido!.... Depois de tanta angústia e de tanta incerteza, como esta visão te descomprimi e tranquiliza um pouco mais!...
Diário de Bordo2Esta amanhã, a moral pode considerar-se elevadíssima! Comi a ave que ontem apanhei... Cozia-a com um toco de uma vela de cera que ainda aí tinha... E apanhei mais um peixito...Tenho aqui a costa de África já muito próxima... e montanhosa para meu espanto....
De facto, estava convencido de que a orla da costa fosse mais baixa, como a da Nigéria, onde fui parar da outra vez... Mas não... É extraordinariamente acidentada ... Já pensei que fosse a Ilha de Fernando Pó...Mas não deve ser...Dá-me a impressão que se prolonga indefinidamente, formando como que uma imensa bacia que se destaca de uma enorme massa verde escura....Ora, se fosse uma ilha, provavelmente teria outra configuração... Porém, as nuvens que pousam nas suas montanhas, que ora cobrem ou descobrem os seus perfis, fazem-me uma certa confusão...Veremos, quando lá chegar...
Diário de Bordo3 Serão neste momento, uma ou duas da tarde... Tem estado um calor sufocante!...Uma calmaria bastante inquietante!...Vejo perfeitamente à minha frente a nordeste a costa de África!... Que se eleva numa enorme serra! Toda coberta de vegetação, encimada por nuvens...
Agora começa a correr uma ligeira brisa... Entretanto, vou ver se consigo velejar qualquer coisa... Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico, tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..
O céu está manchado de azul e de branco.. E, sob aqueles vultos de névoas, descobre-se um verde escuro, luzidio .... Quando poderei lá chegar?!... Tão próximos me parecem aqueles contornos, todavia, fisicamente, tão inacessíveis!
Que pena a força misteriosa das correntes e as ninfas que regem o carinhoso bafo das brisas me não arrastarem para lá...O pano erguido no tosco mastro, mal se mexe, não drapeja. Parece estar ainda mais triste de que eu.
Sim, estou ansioso e preocupado. O tempo passa... As horas correm lentas mas vão seguindo o seu curso... Já não faz tanto calor mas mantém-se a mesma calmaria ... O sol declina, já baixo e meio pálido a poente ... Não tardará a desaparecer... O crepúsculo, aqui é muito rápido...E, eu, na iminência de já não alcançar a tão desejada costa de África... Depois vem a noite... ...Como será a noite?!.. Esta é sempre a minha maior incerteza... A interrogação que faço todos os dias ao anoitecer... Mais uma vez tenho que deixar o meu destino à mercê dos caprichos dos ventos e das correntes... Oh!... esta vontade!.. Esta ânsia de aportar a uma praia e pisar as suas areias, ouvir o sonoro marulhar das ondas (tão diferente do chape-chape no costado da piroga, que já quase me enlouquece) a desfazerem-se na perpétua maresia sonora daquela beberagem espumosa... Oh, brilho divino!...Desejava que ao menos me aproximasses à luz do dia para que não fosse enrolado na rebentação ou atirado contra qualquer rochedo... Quando fiz a travessia de São Tomé ao Príncipe, eu, ao pôr do sol, estava aproximar-me de uma falésia. E vi que ao largo estava a formar-se um tornado. Não tive outro remédio senão afastar-me daquele precipício, voltar costas à rochosa e íngreme encosta. e enfrentar a tempestade. Se me apanhasse ali, não tinha salvação possível... Só Deus sabe os trabalhos que não tive durante aquela tormentosa noite!... Os relâmpagos rasgavam continuamente a escuridão, caíam faíscas por todo o lado. E, o plâncton, que a escuridão trazia à superfície, parecia deixar a espuma das vagas em chama, arder em fogo!
Porém, enquanto a noite me não cobre pela cortina do seu espesso véu e me não turva meus olhos ansiosos, os inunda de sons e silêncios noturnos, evoco aqui um poema de José Régio, creio que muito a propósito, num momento em que me sinto levado a vaguear por um imenso oceano de pemubrosas dúvidas.
Talvez à vida, talvez à morte, não sei..Não sei, efectivamente, onde vou chegando. Mas não ignoro, no entanto, que terei de chegar, urgentemente, a qualquer parte . Porque, o mísero estado em que me encontro, quase esgotado de forças, dificilmente me permitirá que possa adiar a minha sobrevivência por mais tempo, que reuna forças para chegar mais longe.
Por isso, procuro avaliar no lusco-fusco do entardecer, tento decifrar os passos que ainda terei de avançar ou de percorrer... Indago e perscruto, através da morosidade inquietante que me angustia e me arrasta, o que me aguardará para lá dos confins da imensa e misteriosa planura cinzenta, pergunto-me a que ponto do horizonte poderei ser levado..
O tempo refrescou, a noite ondula negra em torno de mim. .Vogo sobre um mar de trevas e o que eu vejo em redor é um manto de escuridão. Lá, no alto, surge o brilho tímido das primeiras estrelas – E, quem sabe, se talvez alguma me sirva agora de guia e de protecção. Oh, sim... Mas, eestando elas, tão longínquas? ....
Diário de Bordo4 - Neste momento são oito horas da noite! Deverão ser cerca das oito hora das noite! Toda a tarde de manhã não houve vento!... Só agora é que apareceu! Estou a velejar!... Estou-me a precipitar como um suicida!.. Não vejo absolutamente nada! Não sei se estou perto, se estou longe da terra!... Mas tenho fome!!... Não posso demorar mais tempo!...
A canoa voa velozmente, qual pássaro notívago. A vela mal se distingue por entre o emaranhado das sombras que preenchem o vazio da noite, no entanto, noto que vai enfunada e que estica retesadamente a corda da escota. Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma. Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona onde deixei de ver os contornos de terra. Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que posso navegar. Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto, não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.
O céu continua carregado de nuvens escuríssimas. Atmosfera densa. Pesadíssimo e baixo o tecto que quase me submerge....A canoa galopa, vai galopando, vai sulcando temerariamente a negra vastidão, qual pássaro noctívago de peito aberto ao desconhecido. Nunca, como esta noite, naveguei com tão porfiada determinação. Nada me intimida. Ou vida ou morte. Vou disposto arriscar tudo. Mesmo a ter que correr o risco da canoa ser atirada para qualquer escolho, negro rochedo ou linha de rebentação.
Navego, talvez há quatro ou cinco horas, vergado sobre o remo. Velejando continuamente às cegas, alheio a todos os perigos. Tão cansado já vou do esforço do remo, que tenho a sensação de estar possuído por uma certa vertigem,... Que não é a canoa que navega à tona de uma vasta e negra planície, mas que sou eu que deslizo e me precipito por uma escuríssima colina abaixo. Não faço a menor ideia para onde vou, que distância me separa de um porto de abrigo. A única coisa de que me apercebo é o ressoar de um certo bruá, que parece vir dos confins da massa escura para onde me dirijo.
Os meus ouvidos funcionam como um autêntico radar - São também os meus olhos. Procuram decifrar todos os ruídos dos súbitos movimentos, todas as ressonâncias, provenientes do barulho das vagas que se enrolam e espumam nas proximidades, as pancadas que se abatem contra o costado,. Avaliam todos os sons, vão sincronizados com o rumorejar noturno do mar.
É, todavia, cada vez mais complicado segurar o remo, o vento é forte e inconstante e vai-se-me tornando difícil saber qual o verdadeiro rumo que estou a tomar. Há muito desisti de olhar para a bússola. Ora navego para um lado ora navego para outro. Tento evitar que a canoa fique completamente à deriva ou atravessada à vaga. Estou fisicamente esgotado e no limiar da minha resistência. A par da fraqueza, invade-me uma enorme sonolência, a que não quero ceder.
Finalmente, encarando a noite e todos os perigos, sem desfalecimento, sem pregar olho, dou-me conta dos primeiros alvores da madrugada. - O vento afrouxa, a vela fica panda e, para minha maior decepção, a claridade do novo dia, faz-me descobrir que, em vez de me ter aproximado dos perfis e recortes daquelas encostas montanhosas, que vira de véspera, afinal, constato de que nada me servira tamanho esforço – Fico com a sensação de que estou noutra posição, ainda mais ao largo. Exausto, aproveito então para me deitar um pouco sobre o fundo duro e encharcado da canoa e descansar – Agora, completamente alheio ao que desse e viesse.... Na esperança, porém, de que o novo dia me conduza a bom porto.
Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade,
Trinta e cinco dias nesta trágica odisseia é realmente muito tempo, para não dizer que é uma eternidade. Não sei, não faço a menor ideia até quando poderei continuar a resistir a este duro e tormentoso desafio.
Diário de Bordo1Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado
Sim, tal como desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico que se vê na imagem(a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas) acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço, Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era,supondo que tivesse sido apanhadopelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o rugido e o cheio nauseabundo a peixe , fez-me logo pensar que era um enorme cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas mais fundas dos abismos. Não sei como a não a escaqueirou. Deu uns valentes esguichos e até ainda me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha, mas a tresandar a uma podre maresia.
Ainda o vi mergulhar e desaparecer. Levantou-se, deuuns sopros eumas borrifadelas, seguidas de alguns rugidos e mergulhou outra vez, da mesma maneira e no mesmo sítio onde se levantou - Mais parecia um mostro pré-histórico, que subitamente havia emergido do fundo dos tempos ou um negro e volúvel submarino vivo, que, depois de errar no seu alvo, se ergueu com a cauda assente nas águas e o focinho nos ares, estrebuchou, guinou, mergulhou e desapareceu.
Não é a primeira vez que se levantam junto à canoa.Mas desta vez,corri o risco de ser abalroado. Foi mesmo muito rentinho.... Tive muita sorte!... Mas elas são cautelosas e eu até gosto de as ver - Deus as proteja dos assassinos que as pescam e de forma tão bárbara; se calhar veio por curiosidade para ver que estranho corpo era o da canoa, que tem o costado como a barriga dos peixes. Ainda por cima de um azulado claro - Um gesto amável dos pescadores do Hornet, nos dias que passei a bordo do pesqueiro americano, de São Tomé a Ano Bom, onde fui largado - Foi pena não ter sido na corrente equatorial, um pouco mais a sul, mas, enfim, estava escrito que deveria ser este o meu destino. . Estava pintada de alcatrão, pelo pescador santomense, que a talhou num tronco da floresta - Se tivesse mantido a mesma cor, certamente que não teria sofrido tantos ataques dos tubarões, atraídos que são por tudo quanto se movimente, brilhe ou branqueie. Não sei se é por esta mesma razão que à volta da canoa, há quase sempre peixes das mais variadas espécies - e sobretudo muitos tubarões pequenos. Felizmente que os perigosos gigantes, solitários, que a atacam, são mais raros.
Solitário e sem destino, sob um céu cinzento e deserto de uma manhã brumosa,envolta por um horizonte encoberto por densas névoas e por saturadas neblinas, povoado por silenciosos e enigmáticos sortilégios- Ó abençoada claridade das madrugadas, que sucede à cerração impenetrável das trevas, às longas horas de espera, aos infinitos momentos de angústia e resignação! Afável serenidade, confiança e audácia do meu ser, que me iluminas e abraças!... Vagueando esfomeado, transitório e frágil à superfície de um ondulante e vastíssimo manto de lívidas ondas, que os turvados céus tingem e confundem, vogando à superfície de um mar brumoso e infindo.
Não choro o meu abandono, porque, apesar da incerteza que me domina, vogando à deriva na vastasolidão que me rodeia, dentro de mimnão há lugar nem para a derrota nem para o desespero;ainda vibra o silêncio que acalenta e não esmorece. Subsiste a intacta e vital vibração da esperança que não falece, que transforma o sofrimento em vitória. Porém, oh, Deus!... Vós, que até agora me acompanhais, lá do alto, que certamente olhais os imensos caminhos da minha náutica e errante aventura, sabereis, com certeza, a dor que vai dentro da minha alma!... O quanto está debilitado e enfraquecido o meu corpo, quanta incerteza vai o meu coração! E qual o peso do calvário por onde me arrasto e vou sendo arrastado.
Algures no Golfo da Guiné, 24 de Novembro de 1975- Há 44 anos
"O horizonte está brumoso. vejo para lá, de uma densa neblina, uns recortes escuros. Não sei bem o que será. Umas vezes parecem-me nuvens escuras e encasteladas, , outras vezes fazem-me lembrar perfis de montanhas. Oxalá seja terra".
Perfis de terra - Eventualmente de novo Fernando Pó
Diário de Bordo1Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas a noite passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado.
Sim, tal como desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico que se vê na imagem(a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas) acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço, Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era,supondo que tivesse sido apanhadopelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o rugido e o cheio nauseabundo a peixe , fez-me logo pensar que era um enorme cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas mais fundas dos abismos.
Não sei como a não escaqueirou a canoa. Deu uns valentes esguichos e até ainda me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha, mas a tresandar a uma podre maresia. Ainda o vi mergulhar e desaparecer. Levantou-se, deuuns sopros eumas borrifadelas, seguidas de alguns rugidos e mergulhou outra vez, da mesma maneira e no mesmo sítio onde se levantou - Mais parecia um mostro pré-histórico, que subitamente havia emergido do fundo dos tempos ou um negro e volúvel submarino vivo, que, depois de errar no seu alvo, se ergueu com a cauda assente nas águas e o focinho nos ares, estrebuchou, guinou, mergulhou e desapareceu.
Não é a primeira vez que se levantam junto à canoa.Mas desta vez,corri o risco de ser abalroado. Foi mesmo muito rentinho.... Tive muita sorte!... Mas elas são cautelosas e eu até gosto de as ver - Deus as proteja dos assassinos que as pescam e de forma tão bárbara; se calhar veio por curiosidade para ver que estranho corpo era o da canoa, que tem o costado como a barriga dos peixes. Ainda por cima de um azulado claro - Um gesto amável dos pescadores do Hornet, nos dias que passei a bordo do pesqueiro americano, de São Tomé a Ano Bom, onde fui largado - Foi pena não ter sido na corrente equatorial, um pouco mais a sul, mas, enfim, estava escrito que deveria ser este o meu destino. . Estava pintada de alcatrão, pelo pescador santomense, que a talhou num tronco da floresta - Se tivesse mantido a mesma cor, certamente que não teria sofrido tantos ataques dos tubarões, atraídos que são por tudo quanto se movimente, brilhe ou branqueie. Não sei se é por esta mesma razão que à volta da canoa, há quase sempre peixes das mais variadas espécies - e sobretudo muitos tubarões pequenos. Felizmente que os perigosos gigantes, solitários, que a atacam, são mais raros.
Diário de bordo 1 - Tenho a impressão que estou realmente próximo da costa africana e parece que já vejo até os contornos....Simplesmente, neste momento, não há vento! Há umas nuvens espessas sobre mim que cobrem completamente o céu! Tudo faz prever que venha a chover! Estou com muita fome!... Bastante fraco!... Sinto realmente uma fraqueza muito grande no corpo!... Dor de costas! Dor de estômago!.... Mas estou a ver se aguento com toda a paciência estes sacrifícios todos!
Diário de Bordo 2 - Sim, realmente, já não tenho a menor dúvida de estar numa enorme baía!... Tenho a impressão de estar numa enorme baía, cercada por terra por todos os lados menos por um!... Se vier um bocadinho de vento é natural que possa ir lá a ter depressa.
Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade.
Trinta e cinco dias nesta trágica odisseia é realmente muito tempo, para não dizer que é uma eternidade. Não sei, não faço a menor ideia até quando poderei continuar a resistir a este duro e tormentoso desafio.
Solitário e sem destino, sob um céu cinzento e deserto de uma manhã brumosa,envolta por um horizonte encoberto por densas névoas e por saturadas neblinas, povoado por silenciosos e enigmáticos sortilégios- Ó abençoada claridade das madrugadas, que sucede à cerração impenetrável das trevas, às longas horas de espera, aos infinitos momentos de angústia e resignação! Afável serenidade, confiança e audácia do meu ser, que me iluminas e abraças!... Vagueando esfomeado, transitório e frágil à superfície de um ondulante e vastíssimo manto de lívidas ondas, que os turvados céus tingem e confundem, vogando à superfície de um mar brumoso e infindo.
Não choro o meu abandono, porque, apesar da incerteza que me domina, vogando à deriva na vastasolidão que me rodeia, dentro de mimnão há lugar nem para a derrota nem para o desespero;ainda vibra o silêncio que acalenta e não esmorece. Subsiste a intacta e vital vibração da esperança que não falece, que transforma o sofrimento em vitória. Porém, oh, Deus!... Vós, que até agora me acompanhais, lá do alto, que certamente olhais os imensos caminhos da minha náutica e errante aventura, sabereis, com certeza, a dor que vai dentro da minha alma!... O quanto está debilitado e enfraquecido o meu corpo, quanta incerteza vai o meu coração! E qual o peso do calvário por onde me arrasto e vou sendo arrastado.
A cor do mar ondula lânguido e oleoso. Mudou nitidamente de um azul escuro para um esverdeado sujo. Ora isto pode ser na realidade sinal de que já me encontre próximo da grande embocadura do Golfo onde as águas vêm concentrar toda a espécie de despojos, sedimentos e porcarias. E os fundos nesta zona são relativamente baixos. Por isso, pelo aspeto da água do mar, que, aliás, agora até passou para uma tonalidade quase turva e cinzenta, devido à ameaça de chuva, é natural que já tenha voltado a aproximar-me da plataforma continental, onde também se situa a própria Ilha de Fernando Pó. Pois, desta ilha ao continente, ainda vão 30 km. Desconfio que aquela mancha, que de volta e meia vejo aparecer e a sumir-se no horizonte, sendo perfis de terra, deverá ser o Monte dos Camarões, que, se não estou em erro, tem mais de 4000 metros de altitude.
Mas, por agora, não posso fazer qualquer conjetura; estou a meio da manhã. Talvez lá para o fim da tarde o céu se descubra melhor. Agora é muito difícil. O tempo escureceu bastante. E não deve tardar a despenhar-se uma carga de água sobre mim.
Não sopra vento algum. Mas a atmosfera é um balão saturado de humidade. Quase não respiro ar mas água. O mar está brando e melancólico. Sinto-me triste vê-lo assim. Gostava de o ver com outra cor e transparência. Com aquele azul escuro e límpido ou quase de um roxo aveludado, que é o mar das grandes profundidades ou então num azul mais claro, com a crista das ondas espumando e refletindo uma luz quase irreal, quando o sol está a pino, ao meio-dia e os raios solares o atravessam, lá do alto e bem aprumo.
Porém, para maior tristeza minha, até parece que já nem cor tem. É muito desagradável ver assim o céu tão espesso e carregado, o mar tão feio e cinzento. Pois, à fome que me devora, junta-se-me ainda uma maior angústia. E apreensão de que não tardem por aí mais uns quantos trabalhos. Pois à chuvada à vista.
E, de facto, com o refrescar do tempo, veio a chuva acompanhada de ventania e de fortíssimas bátegas. Com o tecto do céu escuro e carregado, nem era de esperar senão mais uma carga de água. A que me exponho sem hipótese de abrigo. De pouco me serve a capa que envergo. Cubro a cabeça com um plástico mas a chuva é demasiado forte. Cai em grossas gotas sobre a mim e não cessa de martelar a minha canoa e à minha volta, num barulho que ameaça abafar até o próprio marulho das vagas, que se estendem por toda a vastidão, já totalmente mergulhada por uma cortina diluviana e cinzenta.
Continuo a beber água das chuvas, misturada com água do mar. Não tenho anzóis para pescar. Mal me posso mexer, mas lá tenho que pegar no vertedouro para escoar a água que rapidamente se veio juntar à salmoura já existente, que chocalha constantemente no fundo da canoa. Que não cessa de entrar pelas pequenas rachas e de se avolumar. Sinto-me fraco mas também já nem sei até que ponto esta banheira ainda possa resistir. Se quem vai ceder primeiro, serei eu ou é a canoa que se vai abrir e voltar. Este tempo chuvoso, rouba-me as fracas energias que ainda vão dando vida ao meu tão maltratado corpo. Estou enregelado, sinto-me entorpecido dos pés à cabeça, ensopado de água até aos ossos. A chuva não pára de cair e as horas arrastam-se lentas, ensopadas, penosas e desgastantes.
No entanto, mesmo desconhecendo a quantas ando, o dia segue o seu curso – Nada que se comparem às horas noturnas. Mesmo decorrendo chuvosas e em gélida cadência, não têm a mesma cor das horas mortas de uma infinita noite escura. Avançam alheias ao meu tormento, mas nem por isso se desligam do próprio compasso do tempo. Um dia no mar, mesmo brumoso e chuvoso, nunca se pode comprar ao tumulto de um mar agitado, rodopiando e tumultuando sob um céu espesso e cavernoso, imerso de solidão e liquefeito de trevas. Serão umas quantas da tarde, não sei. Já parou de chover mas estou todo partido. Não faço a menor ideia.
Entretanto, o horizonte clareou, desfez-se da brumosa neblina em que se havia encoberto desde o meio da manhã e, embora cinzento, estende-se agora por um círculo, claramente mais amplo e afastado. O mar é agora um espelho lânguido, morno e calmo. Não se vêm os peixes em redor da canoa. Até parece que a vida se extinguiu. Ainda hoje não vi um raio de sol, contudo, paira em torno de mim uma estranha beleza e quietude. Tudo se confunde e dissipa num extenso manto de harmoniosa placidez e calmaria.
Excertos do diário gravado - Falando do coco divinal que, dia antes, me matara a fome
Diário de Bordo 4 -Tive uma manhã brumosa! Uma manhã sombria!... Uma manhã de chuva!... Tenho a nítida impressão que me aproximo de uma enorme baía!... Baía ladeada de altas montanhas!... Que ora estão escondidas ora ligeiramente descobertas!... Mas quase sempre escondidas...
Estou exausto!... Estou fraco!... As forças cada vez fraqueijam mais... A canoa está cheia de água!... O fundo está cheio de água, devido às constantes chuvadas que caíram esta manhã... Mas eu hei-de aproximar-me de terra... Eu sinto isso..
Constantemente torturado pelas minhas angustias, sinto que física e psicologicamente me encontro noutro mundo. Não, não, este não é o mundo de quem vive com os pés assentes em terra. Flutuo continuamente à flor do abismo, dentro de uma urna muito frágil, que ora se ergue ora vai a cambalear, mas nem é isso que ocupa mais os meus pensamentos, pois já estou familiarizado, mas a fraqueza que me invade. No entanto, mesmo no limiar das minhas forças, se a minha canoa resistir, tenho a certeza que eu não vou desistir de lutar... Estou resignado a suportar, com infinita paciência, todos os reveses e adversidades da minha triste sorte. Resignado, sim, mas não me vou render; o que eu não quero é sofrer ainda mais. Só cruzo os braços quando me deito, quando me estendo no fundo da canoa e junto as mãos ao peito. Porque, eu sei, que, em cada alvorada, há o renascer de um novo dia, de uma noite que se extingue e a luz apaga, uma nova promessa e uma renovada esperança..
Parcas têm sido as minhas palavras para o meu diário de bordo, tal como no dia de ontem, porém, imensos os meus pensamentos, inarráveis os tormentos que assolam o meu coração
Diário de Bordo - 5 - Estou completamente exaurido!...Não sinto nada no estômago... É um saco de fole... Há uma fraqueza geral em mim...mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.... Eu sei que estas palavras que tenho pronunciado têm sido poucas... Tenho-me remetido num autêntico mutismo... Eu sei que estou isolado no mar!... Mas estou-me aproximar de terra!...
É para lá que me dirijo, suavemente…Pois pressintoque as correntes me estão para lá a arrastar!... Vogando como um estranhonum mundo, que, apesar de sucessivamente mais perto, me parece, todavia, ainda perturbadoramente longínquo.
Um vazio contínuoe causticante, arde-me e aperta-meas paredes do estômago. Esforço-me por relaxar o corpo e apagar essa desagradável ardência, mas debalde, debalde! Não tenho outra coisa à mãosenão deixar-me absorver pelo meu sonho, o sonho de cheirar o perfume puro, inebriante da das florestas e beber água pura e cristalina de algum riachoda montanha.
Mas, curiosamente, agora que estou com o estômago completamente vazio e encolhido, estou mais resignado. Sentia-me menos adaptado, quando tinha água e alimentos, até cheguei a chorar. Não de desespero mas por algo estranho a mim, misto de uma imensa tristeza a e abandono. Agora, não sei porquê, não choro, secaram-se-me as lágrimas. Se Deus me levar, que seja essa a sua santa vontade. A sepultura está sempre aberta ao meu lado. Não vou dar trabalho a ninguém. Mas a fome é realmente um suplício terrível! .E, então, dormir de estômago vazio e encharcado, pior ainda!... Ainda se ao menos pudesse repousar!.... Bebo água e arroto, com um sabor desagradável vindo do estômago. Costuma arrotar quem tem a barriga cheia, mas eu aqui arroto por ter a barriga vazia. É o meu saco de fole a implorar-me comida e eu não ter nada com que matar a fome. Ainda se ao menos conseguisse pescar alguma coisa. Fico debruçado sobre a borda da canoa, momentos infindos, tentando apanhá-los à mão, mas agora nem isso já consigo. Já não sou tão lesto.
Quem vai à praia sabe o apetite que traz de lá quando volta a casa. O mar desgasta muito. Enfim, cá me vou acostumando a viver com a minha fraqueza e com a minha fome.. Estou mais resignado... Vou-me entregando pacientemente ao meu silêncio e à minha solidão. Claro, que não me sinto vencido. Vou lutando com as minhas forças, conforme posso. Vivo num estado em que é o sentimento da própria tristeza que me alimenta e me conforma. Sim, sem desespero e sem blasfemar contra ninguém, alimento-me de marezia e de tristeza. Se calhar até desgasta mais a alegria de que a resignação. Naquela noite, em que os golfinhos me visitaram, eu estava mesmo muito abatido!".. E não me queria deitar... Receando que me desse alguma coisa de noite e não mais acordasse. Será que vieram acordar-me e despertar-me para a vida?!...É bem possível.. E a baleia?!... Não terá sido a mesma coisa?!....Vá lá malandro!... Acorda lá que já são horas de te levantares....E, de facto, há terra à vista. Resta saber se lá chego hoje e não sou afastado para longe, como já me tem ao acontecido.
A GARRAFA DO ÁLCOOL QUE ME MATANDO
Diário de Bordo 6 - Devem ser aí uma ou duas da tarde do 35º dia: está sol! O mar mais ou menos sereno! Há uma ligeira brisa mas ando à deriva por não haver vento suficiente para velejar... Acabei agora de mitigar a fome com uma sopa de peixe que tinha aí e de barbatana de tubarão... Enfim... Caiu-me que nem um manjar!... A propósito da sopa que fiz... ia-me saindo cara!... Devido à garrafa de álcool ter explodido!... O que me valeu é que a garrafa já tinha pouco álcool, senão teria tido consequências drásticas!!
Assando uma ave
Foi realmente uma imprudência muito grande de minha parte, não haja dúvida: trouxe uma garrafa de álcool, que era precisamente para me servir delecom a finalidade de chamuscaralgum peixito menos gostoso, que porventura apanhasse. Mas creio que somente cheguei a queimarou outro e da seguinte maneira: verti-o para uma pequena lata onde eram imbuídos uns trapozinhos, ateando-lhe depois o fogo. No entanto, a maior porção ingeri-o à laia de coquetel com água do mar ou das chuvas nalgumas das noites mais frias e chuvosas, Porém, desta vez, com o álcool, quase no fundo da garrafa, cometi de facto uma incrível imprudência, cujas consequências poderiam ser graves e irreparáveis,caso a garrafa não me tivesse fugido da mão em direção ao mar, por ação fulminante de um foguete, onde explodiu como um petardo.
Diário de Bordo 7 - São aí quatro da tarde. O tempo mantém-se sereno...Pouco vento. Tenho andado à deriva visto o vento ser muito fraco.
Apanhei há bocadito um peixe à mão. Foi para mim uma festa!... Estou mais satisfeito agora.... Evidentemente que o comi, cruinho!... Mesmo quase vivo... Soube-me também!.. Ah! o meu estômago andava tão vazio!... Assim ficou melhor
Claro que, sendo pequeno, não me matou a fome. No entanto, constato que, mesmo com coisa pouca me contento, que me faz realmente refletir que o ter ou não muita necessidade de comer é tudo uma questão de ordem psíquica: o fundamental, neste caso, é viver um pouco acima das exigências de caráter psicológico: sim, de algum modo tenho conseguido no patamar dessa vivência, evitando, dentro do possível,pensar em alimentosou comodidadesque não estão ao meu alcance, confinadas ao estreito espaço que habito. Julgo que, se não procedesse assim,só iria agravar ainda mais o meu estado físico e mental, Só me inquietaria e mortificaria inutilmente: pois iria despertar no meu cérebro necessidades artificiais que de facto me seriam impossível de satisfazer.
Eis porque o meu pensamento predominante tem sido, simplesmente, porfiado no meu desejo imenso de apenas viver. Seja de que maneirae em que condições forem: a palavra de ordemé unicamente existir. Não tenho, portanto, vivido para comer, contrariamente às linhas que norteiam certos mortais. A minha existência tem sido praticamente contemplativa
Diário de Bordo 8 - Já se pós o sol do 35º dia!... Portanto, hoje já não chego lá... Aliás, agora, ao fim da tarde, tive um bocadinho de vento mas eu nem pus a vela, visto não poder chegar lã e então... estar de noite muito preocupado com a chegada!... Assim, chego lá amanhã, com certeza....
Apanhei uma ave! Tenho, então, já uma pequena peça de reserva para amanhã, caso enha a necessitar
Neste momento o mar mantém-se com uma certa calmaria!... Ligeiramente ondulado...O horizonte densamente nublado!... E há chuva para Norte... Na terra esytá a chover!... É provável que esta noite venha a ter, portanto, chuva...
Pelos vistos, hoje foi um dia em cheio!... Uma avezita, nada mal!... A coisa assim não está mal!... Esperemos que o fia de amanhã seja ainda melhor!
Geralmente, só adormeço de cansaço, quando a madrugada já vai entrada. Raro acontece antes da meia-noite. Por um lado, é o grande desconforto de ter o estômago vazio e o fundo da canoa ser duro e estar encharcado. Pois o colchão (de praia) há muito rebentou e de nada me serve, Por outro lado, são os muitos pensamentos, a imensa incerteza de que a canoa não resista. .É o que mais me preocupa. E também tenho muito receio de ser abalroado - Sim, já vi alguns barcos no horizonte e já uma manhã um cargueiro passou muito próximo de mim - E eu agitar a minha capa, agitar e apitar e ele a passar ao meu lado, como um monstro....É talvez ainda maior o desapontamento e a crueldade, que quando se mostra um rebuçado a uma criança e se lhe nega, ante os seus olhos ávidos e espantados.... É intraduzível a tristeza e a deceção que se apoderou de mim... Senti-me então a criatura mais abandonada e triste deste mundo....E mais me convenci que só podia depender de mim, da minha força de vontade.
Além disso, de noite nunca sei para onde as correntes me arrastam.. E as correntes são quase como os ventos, nem sempre tomam o mesmo sentido. Por vezes, até me parecem pequenos rios. São correntes dentro de outras correntes. Receio que me aproxime da costa e seja atirado contra a rebentação de algum penedo.. Tenho o sono dos gatos, à mínima coisa, acordo. Ainda não consegui dormir uma noite inteira. Ou porque chove ou porque, mesmo sem chover, as constantes pancadas e balanços das vagas na canoa, atordoam-me, perturbam-me o descanso. O chape-chape deixa-me a cabeça num frangalho - É um autêntico martírio! . Porém, a manhã já raiou, embora sombria e com ameaça de trovoadas, por agora, cá vou indo, levado, não sei para onde.
Se olhar para a bússola, sei a direcção que a canoa toma, mas os ventos e as correntes fazem-na mudar constantemente. . Tanto pode ser empurrada para norte, sul, leste ou oeste. Se não fosse isso, já tinha dado a qualquer ponto da costa. Vou para onde me empurrar o vento e os caprichos das correntes. .Eu sou um zé ninguém e a minha canoa uma tábua flutuante... Estou muito cansado de tanto olhar para o horizonte e para a bússola... Lá ponho a vela, quando o vento é favorável, mas com muito esforço... Ainda se tivesse um remo apropriado, mas o que improvisei, é demasiado tosco . Por isso, vou-me entregando à mercê de Deus...Aqui no mar sinto um grande apelo às minhas raízes cristãs. A fé é um bom suplemento de energias . E estou convencido que tenho um olhar divino a estender-me a sua bênção. Mas em terra eu não sou assim tão crente.
Também já tenho avistado muitos golfinhos. Nadam em fila lado a lado, uns dos outros. Lá vão à sua vida, e eu continuo na minha. Uma noite resolveram brincar comigo. Fizeram do casco o seu arco. Como estava muito escuro, deixavam um rasto luminescente...Exprimiam uns grunhidos, muito estranhos, saindo do fundo das águas, como foguetes da escuridão, deixando um rasto luminoso. Era cambalhota atrás de cambalhota por sobre a canoa. Até parecia um foguetório. . Receando que algum caísse dentro da canoa e ma partisse, dei umas apitadelas com o apito que trago sempre pendurado no pescoço e desapareceram. Se calhar vieram-me acordar-me para a vida. , Foi numa daquelas noites muito tristes, em que me sentia muito fraco e deprimido. Mas agora já estou mais acostumado a viver com a minha fraqueza. Não tenho comido nada. Tenho estômago, mesmo duro e encolhido. Quanto arroto, parece que até me vem à boca, o gosto às minhas vísceras. Vá lá que não me tem faltado água das chuvas. Houve uns dias em que não choveu e só bebi água do mar. .. Bebia de vez em quando aos golinhos para não me fazer mal e também para não me desidratar. Não havia uma nuvem no céu e nem uma aragem corria... Eram calmarias atrás de calmarias,, Que tormento o meu!. Antes apanhar água das chuvas em cima do corpo, de que não chover e morrer de sede.
Numa tarde, era tanto, tanto o calor que me queimava a garganta, quase me sinta sufocado (sim, este é um mar equatorial, em que o sol sob a pino e os dias e as noites são sempre iguais) que lasquei um pedacinho da borda da canoa, que estava húmida e fiz uma espécie de chiclete. ... Meu Deus!... No mar a fome é dolorosa, mas a sede é ainda pior - É uma tortura insuportável! - E, todavia, tanta água à minha volta!...Que suplício!... Eu lá ia bebendo uns golitos de água salgada, mas ficava sempre com sede. Não é a mesma coisa que a das chuvas ou água potável. Serve para amenizar mas pouco mais dava que ir molhando os lábios e humedecendo a garganta. . Mesmo assim, ás vezes lá ia fechando os olhos, tomando-lhe o gosto e bebendo um pouco mais.
Pensamento do dia EU E O MAR - José Luís Peixoto, escritor
Para José Luís Peixoto, a melhor forma para setirar bom partido do mar consiste em "observá-lo, desfrutar dele, contemplá-lo e, se possível, escrever sobre ele".