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domingo, 22 de outubro de 2023

Algures perdido no imenso Golfo da Guiné... - 22-10-1975 - 2º dia dos 38 a percorrer à deriva numa canoa...Não sei para onde vou. . . Impossível pedir qualquer socorro!...Eu neste momento sou um náufrago..! Só me resta contar com a sorte... Ou com à Providencia Divina! -

Jorge Trabulo Marques - Navegador solitário nas canoas de S. Tomé: 1ªde S. Tomé ao Príncipe - 3 dias;2ª  de S. Tomé à Nigéria 13; 3ª De Ano Bom a Bioko 38 dias, além da capital  a Anambô, o primeiro teste  - Este é o segundo dia do meu drama marítimo, vivido há 48 anos, com mais 36 dias ainda pela frente  - Aqui lhe recordo com passagens do meu diário gravado e de algumas imagens da modesta máquina fotográfica que pude guardar no interior de um vulgar caixote do lixo - de plástico.                                              


Vou ao sabor das tempestades ou das calmarias. Seja nas mais cerradas trevas da noite ou da mais escaldante luz equatorial do dia . Ladeado pela barbatana em riste da presença de constantes tubarões e à flor da superfície de um tumultuoso e abissal sorvedouro sem margens a perder-se-me de vista pelo diluído círculo em meu redor

Vou para onde à canoa quiser. Isto é, vou para onde o mar e os ventos me levarem...” -Todavia, cruzar os braços, isso nunca!.. Sim, porque a esperança, para mim, seria a última coisa a morrer.

Diário "Encontro-me neste momento, algures... pelo imenso Golfo da Guiné...Não tenho leme para orientar a minha canoa no meio de um mar agitado, bastante ameaçador!". - Sim, do leme que lhe adaptei na popa, que saltara com a vaga que invadira a canoa na tempestade e também desprovido do único remo que trazia a bordo e, navegar com o remo que improvisei, é muito difícil e penoso.

"Não sei para onde vou... Possivelmente para o Gabão... Pois, para S. Tomé, não vejo qualquer hipótese...

"Governar um canoa sem remo (perdi-o na noite da tempestade) Estou à mercê de todas as contingências... Espero, todavia, chegar à lugar seguro.

Esperar!...Sim, esperar!...Restava-me saber esperar!... Ah! e saber esperar, numa incerteza tao grande, quão difícil me era, meu Deus!... " -

Mesmo assim, estas as palavras possíveis, no meu diário gravado (protegido num contentor de plástico, igual aos do lixo com a máquina fotográfica) depois de uma noite bem longa e tormentosa e de uma manhã e parte da tarde, não menos agitadas, chuvosas e sombrias.

Embora já um pouco recomposto daquelas horas dramáticas da noite da tempestade, sentia-me, no entanto, numa espécie de profundo abandono, de algum torpor, se bem que enlevado num misto de serenidade, de fé e de confiança.

Deitado no fundo da canoa, com o dia quase a finar-se, o sol a espalhar alguns raios de ouro sobre o azul escuro das águas, calma e pausadamente, por fim, lá ganhei então mais coragem, desprendendo-me do profundo silêncio e mutismo, em que vinha, a que me remetera, e comecei então por falar para o pequeno gravador, umas escassas palavras, que , de ora avante , me iria servir de mudo confidente ao longo das boas e mais horas.

E, para trás, ficavam, pois, momentos bem difíceis, de que eu não me esqueceria de recordar.

Diário " -Ao fim de doze horas de bom velejamento, acontece o mau tempo!... Surge um tornado!... Tenho necessidade de fazer algumas manobras melindrosas. ...Nesse entretempo perco o leme ... E a partir daí fico completamente a deriva!....No meio de um mar agitadíssimo!...

Pensei a todo o momento que à canoa se voltaria, que eu já não tinha qualquer hipótese de salvação!... Mas eu não perdi à calma!... Não perdi à esperança e fui remediando à situação da maneira que me era possível… De imediato procurei arranjar um pequeno salva-vidas, construído com umas travessas de madeira, que retirei do fundo da canoa, e um colchão pneumático.

Eu sabia que isso não me chegava, mas a canoa, voltada, também não me oferecia quaisquer condições de salvação...

Foi uma noite ventosa, pesada e muito triste...

Apesar disso, da situação ser muito dura e melindrosa, nem um murmúrio. . .nem uma palavra balbuciei!… Mantive à serenidade!...

E aqui me encontro, já ao fim da tarde deste dia, depois de um dia...vagueando à deriva... vagueando sem rumo!"

Impossível parar, voltar para trás ou pedir qualquer socorro. Comunicar com um barco, com um porto, com o mundo exterior, só se fosse em pensamento: quanto muito, podia ouvir qualquer estacão de rádio, de S. Tomé ou de um país da vizinha costa africana, através de um modesto transístor de pilhas - mas tal possibilidade, de momento, era coisa em que nem sequer pensava.

E, afinal, para quê ouvir vozes de um mundo do qual, de algum modo, me julgava já não pertencer!...Na verdade, era ainda muito cedo para ganhar tal disposição.

Todavia, cruzar os braços, isso nunca, era coisa à que não me rendia. Sim, porque a esperança, para mim, seria a última coisa a morrer.

Diário - "Fiz aqui uma serie de improvisações para tentar remediar a situação, mas de maneira alguma chegam para colmatar a falta do leme. Eu sem leme (que lhe adaptei sem remo) não posso navegar, não posso velejar, não posso dar rumo à canoa. Ando aqui ao sabor dos ventos!...Ao sabor das correntes!

Não vejo absolutamente ninguém em meu redor… Só vejo mar! Um mar profundo, azul! Um azul escuro!

O céu mais ou menos descoberto, com algumas partes muito nublado… Há um silêncio!...Apenas se ouve o murmúrio das vagas...

Parece-me que tal...que tais impressões apenas se podem ouvir, se podem aperceber numa situação como à minha…

Eu neste momento sou um náufrago! Um autêntico náufrago!... Já não tenho domínio de mim...Vou para onde à canoa quiser...Isto é, vou para onde o mar e os ventos me levarem...”

A canoa "São Tome - Yon Gato" - nome em homenagem a um dos primeiros heróis da resistência colonial) a bem dizer, era mais um madeiro ou destroço como os demais que de vez em aquando avistava à superfície das vagas. O seu curso era agora simplesmente o dos ventos e das correntes. É nesse incerto rumo, nessa dolorosa espera… Só me restava contar com à sorte... Ou com à Providencia Divina.

Não sabia onde estava. Tinha à sensação de estar ali e ao mesmo tempo em parte alguma.... Longe do mundo a que pertencia, mas, tal existência, já não passava de um mero exercício de imaginação.

Era, pois, um náufrago, e eu já me apercebera disso. Claramente, nitidamente.... Tinha a perfeita consciência do meu grande abandono.

Diário - “O mar ameaça a cada momento tragar à minha canoa! Todavia, eu mantenho a minha serenidade!....Eu acho que um náufrago… deve, acima de tudo, nunca perder as esperanças!

Eu fiz tudo que pude e tinha de fazer, sem me precipitar… A situação tem sido muito melindrosa, bastante. Oxalá eu chegue à bom destino. . .

O vento começa a soprar agora com mais intensidade... ouve-se o murmúrio das vagas... há um silêncio... Uma solidão!... Apenas entrecortada pelo marulhar das vagas.  

São os elementos da natureza em fúria... O vento…O mar!...

Sinto ao mesmo tempo uma sensação de abandono, de esquecimento!... Ninguém sabe onde estou... Talvez todos me julguem à caminho do Brasil... Mas eu estou aqui perdido neste vasto Golfo da Guiné… Perdido!... Entregue ao meu próprio destino!...

Se a canoa se virar, ninguém me pode valer. . . Ninguém!

Os tubarões de vez em quando volteiam em meu redor…

Esta canoa não se apresenta muito bem concebida; além de deixar entrar a água, não tem estabilidade nenhuma… Eu se tentasse à travessia com esta canoa, estou certo que não chegaria ao fim!... Balanceia bastante!... Pelos vistos em questões de canoa, desta vez tive pouca sorte.

Espero que esta gravação um dia venha à ser ouvida… Espero que sim... .Espero.. Tenho muita esperança...

Não sei o que mais dizer... Estou aqui, dentro de um espaço estreitíssimo, todo em desordem… Onde se respira uma autêntica anarquia… Onde há odores até desagradáveis devido a restos de comida que se espalharam... (e até das necessidades que não pude verter borda fora) .... E há um contraste!.... Entre o espaço que me limita e o espaço que me rodeia... Um verdadeiro contraste!..."

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