Por Jorge Trabulo Marques - Jornalista - c
Este estudo deu-nos várias horas de trabalho - Nomeadamente, na atenta e demorada análise dos excertos que tomámos a liberdade de selecionar do Diário de William Beckford em Portugal e Espanha - Livro editado pela BNP que recomendámos. Que mais não seja para ver até onde vai o requinte literário da hipocrisia e das palacianas e parasitas farsas dos costumes portugueses naquele período - De um autor referido num poema de Lord Byron, Se porventura retirar alguns excertos, não se esqueça de citar a fonte.
William Thomas Beckford (01 de
outubro de 1760 - 2 de Maio 1844), mais conhecido como William Beckford. aristocrata inglês, romancista, colecionador e crítico de
arte, perseguido nos últimos anos da sua vida devido à sua homossexualidade com
um menor, é das tais personagens que
escreveu polémicos episódios da sua vida pessoal em forma de diário e publicou
livros de viagem, do mais fino recorte literário, e da qual muito se especulou,
custa a crer que ainda ninguém se lembrasse de produzir um filme, nomeadamente
dos períodos que passou em Portugal – Mas que manancial mais vasto e prolixo! – Há argumentos para todos os gostos-"O Padre Duarte chupava o dedo a um canto (...) e o
velho marquês inspirado por um adágio patético, pôs-se a deslizar ,
repentinamente , pela sala, numa espécie de passo de dança",,,,Beckford esteve em Portugal por três vezes:
1787 e 1789; 1793 e 1795 e entre 1798 a 1799.
Não é nosso desejo traçarmos aqui o perfil ou os devaneios sexuais do famoso William Beckford - Essa é uma questão demasiado intrigante e complexa, que nos ultrapassa, sobre uma personalidade, tão multifacetada e controversa, cuja análise não é fácil de fazer.
Contudo, uma interrogação se nos
colocou, depois de lermos atentamente a descrição dos episódios do seu diário, relacionados com a
sua estadia em Portugal e em Espanha - sim, confrontando, alguns aspectos da sua anterior e "obsessiva paixão", em
torno do pequeno William Courtenay (9º Conde de Devon), com a que viria a manifestar a um miúdo português de 13 anos – referências que
são quase uma constante nas páginas do
mesmo diário - obviamente que não deixaríamos de colocar esta pergunta:
Terão sido
razões de ordem sexual, doentia e perversa,
acaso impulsos de natureza pedófila , o principal motivo que levaria, William
Beckford a fixar-se por várias vezes em Portugal? – E cujos costumes, asperamente, tantas vezes critica. Não
me surpreenderia se, os entendidos em matéria de psicologia sexual, chegassem a
essa conclusão. Nós ficámos com essa ideia - Pelo menos, no que respeita ao período
expresso no seu diário de 30 de Maio de 1787 a 1 de Dezembro. Naturalmente que as paisagens de Sintra o afeiçoaram, em todo o caso, há demasiada mordacidade nas suas observações, quer sobre pessoas quer sobre costumes - É muito veneno para quem - salvo o embaixador inglês - o cumula de tantas atenções, desde a casa real, nobreza e clero - Além da dita raia miúda que chegou a encará-lo como um enviado de Santo António - Resta saber se foi pelo facto de se fazer rodear de crianças (no que certas taras são exímias) ou por se revelar um profundo devoto - Alias, a família chegou a temer que pudesse vir a trocar o protestantismo pela fé católica - Mas nunca se confirmou - Pois, muito do seu comportamento, não passava de alguma teatralidade palaciana ou de coreografia literária para os seus diários.
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Enquanto, por seu turno, o Marquês de Marialva - cego de ambições e honrarias temporais - garantia fielmente todo o apoio
ao milionário e aristocrata inglês (ao que parece para lhe impor em casamento a filha
Henriqueta de 15 anos), afinal, a maior obsessão de Beckford, a par do seu gosto pelos principescos banquetes, sim,
das lautas e gordas almoçaradas e jantaradas
em que regularmente participava, era porfiadamente nos
atrativos do filho, o menor D. Pedro, que chegaria a mimosear de "querido Pedrinho: - inicialmente
descrito como o “Pedro de Marialva, um adolescente não
de todo deselegante, mas desfigurado por um absurdo rabicho” Ao qual se foi afeiçoando, praticamente substituindo-se
aos carinhos do pai.
Sim, enquanto o marquês alimentava outra obsessão, da forma mais servil e cega: "Recebi outra carta do marquês de Marialva escrita em português, a carta mais amistosa e afectuosa que li. Começa a ser mais que suspeita a minha impressão de que ele me destina D. Henriqueta, a filha mais velha, e que se sente lisonjeada de se sobrepor à Rainha, oferecendo-me honras e distinções que podem concorrer para o meu estabelecimento em Portugal. Santo António veio oportunamente em meu auxílio e é a grande máquina da peça em que eu virei a ter a honra de representar o meu papel, se estiver disposto a isso. Realmente, chegou a acreditar que estou em vésperas de grandes acontecimentos. Um novo cenário se está a revelar aos meus olhos, como um novo céu e uma nova terra. As beatas dizem que nada é de mais para um carácter tão exemplar como o meu e que sua majestade deve encorajar um tão brilhante modelo de devoção como uma chuva de oiro e diamantes e de títulos." (...) Segunda-feira, 18 de Junho -
Sábado, 30 de Junho "Quanto mais conheço o marquês, mais razões tenho para gostar dele(..) Chega a esquecer, inclusivamente, os deveres do seu cargo. Esta tarde, em vez de acompanhar, Sua Majestade ao convento (...) saiu na carruagem comigo."
Sim, enquanto o marquês alimentava outra obsessão, da forma mais servil e cega: "Recebi outra carta do marquês de Marialva escrita em português, a carta mais amistosa e afectuosa que li. Começa a ser mais que suspeita a minha impressão de que ele me destina D. Henriqueta, a filha mais velha, e que se sente lisonjeada de se sobrepor à Rainha, oferecendo-me honras e distinções que podem concorrer para o meu estabelecimento em Portugal. Santo António veio oportunamente em meu auxílio e é a grande máquina da peça em que eu virei a ter a honra de representar o meu papel, se estiver disposto a isso. Realmente, chegou a acreditar que estou em vésperas de grandes acontecimentos. Um novo cenário se está a revelar aos meus olhos, como um novo céu e uma nova terra. As beatas dizem que nada é de mais para um carácter tão exemplar como o meu e que sua majestade deve encorajar um tão brilhante modelo de devoção como uma chuva de oiro e diamantes e de títulos." (...) Segunda-feira, 18 de Junho -
Sábado, 30 de Junho "Quanto mais conheço o marquês, mais razões tenho para gostar dele(..) Chega a esquecer, inclusivamente, os deveres do seu cargo. Esta tarde, em vez de acompanhar, Sua Majestade ao convento (...) saiu na carruagem comigo."
Não era que, um tal comportamento
de afetos, de cariz paternal ou platónico, ao filho do Marquês (a segunda figura mais poderosa do reino) lhe ficasse mal, bem pelo contrário, se não estivessem, porventura, subjacentes outros
intuitos obscuros. Carinhos, que, de resto, até se justificavam, atendendo à rigidez de uma educação, que ele mesmo reconhecera de castradora
– Mas é bem verdade que, em muitos casos, por detrás de um afeto, há um desejo perverso. E, almas puras, talvez só
as da ingenuidade dos adolescentes, enquanto o vício e a maldade humana, não a conspurca.
".Pedro estava pálido e abatido. Fica perturbado quando me ouve cantar" “D. Pedro gosta de mim!
Já lhe senti a doçura dos lábios. Os seus queridos olhos já me confessaram o
segredo do seu coração. Depois de jantar senti-me num tal estado de excitação e
impaciência que não pude estar quieto. Andei de um lado para o outro da
casa.
“Oh, como seria bom poder estender-me no
areal, à hora do luar, e confessar todas as minhas fraquezas e desregradas
fantasias a um lânguido, amoroso, jovem, reclinado à minha beira, e arrastado a
um suave delírio pela vaga luminosidade da Lua e indeciso murmúrio das águas.
Ai de mim, estarei eu condenado a passar a minha mocidade sem tornar a sentir
nunca mais, receoso e deslumbrado, estas sensações ao mesmo tempo delicadas e infantis"
"Apesar da sua passividade, não posso
deixar de gostar dele. O pai trata-o muito asperamente, subjugando o pouco de
energia que nele há com palavras duras e olhares severos. O pobre pequeno,
creio-o bem, sente mais simpatia por mim do que por qualquer outro ser humano,
à excepção de D. Henriqueta. Não tem amigos, não tem companheiros, não tem
oportunidade alguma de se distrair, excepto quando vem a minha casa Se ele
ousasse, pudesse ele subjugar a timidez que o domina, estou convencido de que se
lançaria nos meus braços”
"D. Pedro mais triste de que nunca. Bebeu Bergonha até mais não, mas creio que, mesmo que tivesse bebido brande, não estaria mais animado. O grão-prior procurou rir-se da sua silenciosa tristeza mas sem resultado. Por mim também estava melancólico de mais para o secundar nas suas bem-humoradas intenções, e deixei D.Pedro sozinho a uma janela, durante uma hora, sem interromper a sua meditação."
"D. Pedro mais triste de que nunca. Bebeu Bergonha até mais não, mas creio que, mesmo que tivesse bebido brande, não estaria mais animado. O grão-prior procurou rir-se da sua silenciosa tristeza mas sem resultado. Por mim também estava melancólico de mais para o secundar nas suas bem-humoradas intenções, e deixei D.Pedro sozinho a uma janela, durante uma hora, sem interromper a sua meditação."
ÓRFÃO MILIONÁRIO
William Beckford, que, aos 10 anos,
herda a maior fortuna de Inglaterra, avaliada na época em cerca de um milhão de
libras, incluindo propriedades e plantações de açúcar e de escravos, era filho
único e órfão de Alderman William Beckford (um dos homens mais ricos de
Inglaterra, por duas vezes eleito o
mayor de Londres), acabaria, no entanto,
por ser criado e educado por uma mãe de temperamento autoritário e
conservador, que lhe facultaria tudo
quanto era possível esperar de uma
família rica e aristocrática e de tenra idade: aulas de piano de Mozart, bem como
ensinamentos de pintura e de arquitetura pelos melhores mestres e a aprendizagem
de várias línguas, a que, na fase de adulto, acrescentaria o português e o
espanhol.
Porém, como se compreenderá,
mais importante que a riqueza é a harmonia, os afetos do ambiente familiar, os quais, pelos
vistos, Beckford ,não os logrou ter. Por esse facto,
o tornariam num adolescente crescido para o resto da vida, com paixões
assolapadas por crianças e rapazes. – Tendo sido acusado, aos 18 anos, no envolvimento
homossexual (a palavra pedofilia, nessa altura ainda não era conhecida)
com William "Kitty" Courtenay, (1768 -1835),
também ele filho único do oitavo conde de Devon , 2º Visconde Courtenay e sua
esposa Frances Clack. William Courtenay, 9th Earl of Devon -
Enamorado
pelos encantos do então menino de 10
anos, que, mais tarde lograria o título de 9º Conde de Devon - O adolescente efeminado
e formoso, que, os seus conterrâneos, classificariam como o menino mais bonito
da Inglaterra, dotes físicos que não escapariam
à lubricidade de um jovem, que lhe levava mais oito anos de idade, já maior- Escândalo
esse, que, anos mais tarde, levaria a família a mandá-lo para as suas
plantações na Jamaica, tendo-se, porém, quedado por Lisboa.
EXPULSO DA FAMÍLIA - ARRIBA EM LISBOA
“Fez-se ao largo no dia 15 de
Março, e o primeiro porto em que tocou foi o de Lisboa, nove dias depois. Tendo
passado a maior parte do tempo enjoado, recusou-se a ir mais longe, e ali ficou
oito meses. A sua demora podia ter sido muito breve, e nesse caso teríamos sido
privados do Diário. Robert Walpole, o ministro inglês, conhecedor da sua
reputação, recusou-se a recebe-lo ou a apresentá-lo à Rainha de Portugal, D.
Maria I. E este acto excluía-o, automaticamente, das funções oficiais e da sociedade
inglesa” - diz Boyd Alexander na
introdução do “Diário de William Bekford em Portugal e em Espanha”, que
acrescenta:
“Mas os
acontecimentos tornaram um aspecto inaudito. Como quer que seja, Beckford
viu-se apresentado ao favorito da Rainha, Diogo, o «jovem» marquês de Marialva,
estribeiro-mor, mais velho do que ele vinte e um anos >. Marialva ficou-lhe
logo profundamente dedicado, e tornaram-se inseparáveis. Isto colocou Beckford
em pé de igualdade com metade dos homens da alta-sociedade de Lisboa, que, pela
sua maior parte, eram todos parentes uns dos outros e formavam um circulo
fechado. Assim, foi grande o número de amigos e parentes de Marialva que
visitou Beckford e que tomou partido pelo seu caso invulgar, assunto de todas
as conversas na cidade. Havia a acrescentar o prestígio da sua óptima mesa, do
seu bom gosto, da sua imensa fortuna e do seu animado e exótico convívio.
Marialva revolveu tudo para conseguir apresentá-lo à Rainha.
Tal como reconhece, ainda Body
Alexander, “Beckford, embora algumas
vezes mostrasse tendências amorosas para com mulheres, não era homem para casar
com D. Henriqueta Interessava-o muitíssimo mais D. Pedro, irmão dela, então de
treze anos de idade. O Diário abre com o seu primeiro encontro com o casal e,
através dele, é-nos possível acompanhar a tragédia desta amizade.
Independentemente das suas tendências inatas, Beckford gostava de contribuir
para a formação do espírito e do gosto dos rapazes.
DE PERSEGUIDO SEXUAL A AGENTE
PROVOCADOR
Muitas têm sido as especulações acerca
da estadia de Beckford, em Portugal –. Diz João Gaspar Simões, tradutor do
diário, que “Eram o mais fantasiosas as conjecturas que corriam acerca da
estada entre nós do aristocrata de Fonihill: Teôfilo Braga, no seu volume sobre
Bocage, alude à hipótese, que, aliás, se lhe afigura inverosímil; de Beckford
ter pretendido casar com uma filha bastarda do marquês de Marialva. Mas já se
lhe afigura mais plausível aquela que fez de Beckford uma espécie de agente
provocador enviado a Portugal pela Inglaterra."
É natural que assim sucedesse –
que a sua estadia fosse diversamente interpretada - Num tempo em que, das janelas das casas de
capital, se lançava toda a sorte de detritos à rua (a que, aliás faz referência
no seu diário), não nos parece que fosse aspeto muito atrativo e lisonjeiro para as
exigências da hipersensibilidade de um aristocrata e milionário inglês - Que cultivava o gosto pela jardinagem,
por colecionar e escrevinhar, e, logo, fixar-se num país em que, “a nobreza, não era muito
rica; embora tivesse grandes patrimónios, os seus rendimentos eram pequenos.(..).
Num país onde não há corridas de cavalos, casas de jogo autorizadas ou amantes
dispendiosas, um fidalgo pode viver, esplendidamente, com um moderado
rendimento ... Nem sequer poderá despertar a inveja do pobre, com as suas
orgias nocturnas ou com as suas carruagens douradas. Despende o seu tempo entre
os deveres de palaciano e os passatempos das reuniões particulares. As
Belas-Artes.; são quase inteiramente desdenhadas pela nobreza do País” - Diz Murphy, citado por Byd Alexander, ainda nas
notas introdutórias do Diário de William
Beckford,
Vá lá,
que, sendo ele um amante dos jardins e de plantação de árvores, optou por viver num belo palácio na zona de Sintra.
WILLIAM BECKFOR - UM NOME MUITO CITADO
“O nome
de Beckford de tal modo anda associado à história dos costumes portugueses do
século XVIII que não há autor nosso que se não abone nas observações das suas
cartas , para traçar o quadro da vida lisboeta no tempo da senhora D. Maria I” - Diz ainda João Gaspar Simões em notas do prefácio do tradutor do Diário de
William Beckford em Portugal e em Espanha, editado pela BNP, em 2009
(…) É este volume que contém,
praticamente, todo o material que, os eruditos portugueses vêm utilizando nas
citações que fazem da curiosíssima obra. Corresponde a primeira carta de A
Corte a 30 de Maio de 1787 e as duas últimas, respectivamente, a 28 de Novembro
e a 1 de Dezembro, e é neste período de pouco mais de seis meses que se situa a
primeira estada do famoso aristocrata em terras de Portugal.
MENTIROSO E PERVERTIDO - DIZ GASPAR SIMÕES
É deste modo, nada elogioso, que,
o conhecido crítico literário, JGS, define o carácter de Willian Beckfor: “Dois
episódios impressionam o leitor do Diário, reforçando o ponto de vista em que alguns
autores ingleses, de resto, abundam - verbi gratia, Rose Macaulay, no seu livro
They went to Portugal - , isto é, que Beckford não tinha pejo em mentir, desde
que a mentira pudesse concorrer para de qualquer modo fazer realçar os coturnos
em que se exibia a sua personalidade «sem escrúpulos, perversa, fátua;
mentirosa, corruptora da juventude», etc. De facto, tendo descrito, nos seus
Sketches, com data de 8 de Novembro, um jantar em sua própria casa, em que
figurava o poeta Bocage, prova-se que Elmano Sadina se encontrava, nessa
altura, em Goa”
(…) "Voltou Beckford mais duas
vezes ao nosso país. A segunda, em Novembro de 1 793, tendo ficado, entre nós,
aproximadamente dois anos, e a terceira, em Outubro de 1798, permanecendo até
julho do ano seguinte. Mas as cartas que reuniu nos Sketches, todas datadas de
1787 e J 788, só contêm, em princípio, material respeitante à primeira visita.
Aliás, da segunda vez que esteve em Portugal limitou-se a redigir um breve
diário, durante uma excursão que realizou aos Mosteiros da Batalha e de
Alcobaça. Quarenta anos mais tarde, publicou-o sob o titulo de Recollections of
an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha. Quando da terceira
visita, não consta que tenha escrito seja o que for".
QUEM ERA D. PEDRO OU SEU "QUERIDO PEDRINHO" -
E quem era esse tão querido D. Pedro, então de 13 anos de idade?... Era, nem
mais nem menos, que "Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho o 6º
Marquês de Marialva, 8º Conde de Cantanhede, o último Marialva a habitar o
Palácio de Seteais.Filho de D. Diogo Vito de Menezes Coutinho, 5.º Marquês de
Marialva, entrou para o exército como cadete em Outubro de 1786.Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho – Wikipédia .
EXCERTOS DO DIÁRIO - COM CITAÇÕES AO AO SEU AMADO
PEDRO
Lisboa, 25 de Maio de 1877 (…)O marquês tem a mania
dos relógios, das pendulas e dos despertadores. Quatro ou cinco estavam a tocar
e tinham um som deplorável. Deixei-os a fazer barulho, pois eram precisamente
seis horas da tarde, e segui o meu venerável guia, descendo e subindo meia
dúzia de escadas e percorrendo vários terraços até chegar a um grande salão
forrado de damasco vermelho, todo esgarçado. Nesta dependência encontrei D.
Pedro de Marialva, um adolescente não de todo deselegante, mas desfigurado por
um absurdo rabicho. Recebeu-me com muita deferência, objecto que eu era da
particular predilecção de seu pai
Terça-feira, 29 de Maio (…).Lancei os olhos ao despenhadeiro sobre a mais
lisa praia que imaginar se pode. As ondas, embaladas por uma fresca brisa,
quebravam, mansamente, na areia. Oh, como seria bom poder estender-me no areal,
à hora do luar, e confessar todas as minhas fraquezas e desregradas fantasias a
um lânguido, amoroso, jovem, reclinado à minha beira, e arrastado a um suave
delírio pela vaga luminosidade da Lua e indeciso murmúrio das águas. Ai de mim,
estarei eu condenado a passar a minha mocidade sem tornar a sentir nunca mais,
receoso e deslumbrado, estas sensações ao mesmo tempo delicadas e infantis
(…)Depois do jantar, sentei-me ao piano e toquei quase
sem interrupção. Mascarenhas, que é doido por música, ficou todo o tempo a
ouvir-me sentado ao lado do meu instrumento (…) Mascarenhas parecia alheio a
tudo, Acciaoli estava sem disposição para se divertir e D. Pedro, debruçado
sobre a minha cadeira, tinha a
respiração ofegante, soluçando de vez em quando. O filho do Marialva principiou
a ter consciência do mundo desde que começou a privar comigo. Quando o conheci
era tolo e inexpressivo rapaz.
Quinta-feira, 31 de Maio (…) O abade deteve-nos no
regresso para me entregar uma carta afectuosíssima do marquês de Marialva. (…)
O marquês escreve-me no seu francês - a sua última carta é bastante tolerável,
quer como estilo, quer como gramático. Como é que irá acabar esta
correspondência, esta viva amizade tão subitamente concedida e tão rapidamente
transformada em perfeição? D. Pedro não apareceu na varanda. O pobre pequeno é
educado o mais possível dentro de casa e estritamente. Vive num espaço acanhado
e obrigam- no a trabalhos forçados, com uma média de oito a nove lições por dia
Em vez de o encorajarem a remar no rio, a jogar o cricket ou a correr no jardim
com as crianças da sua idade, passa a vida engaiolado com um rebanho de
desdentadas amas e de inválidos capelães, todos a trabalhar para o mesmo fim,
que é apoucar-lhe o espírito com ameaças e orações.
Domingo,3 de Junho
-(…) . Conseguimos abrir caminho entre montões de imundície até à grande
escadaria e íamos caindo sobre uma monstruosa porca e a sua numerosa prole, que
se escapou debaixo dos pés de Mr. Horne, soltando dolorosos grunhidos. Esta
algazarra anunciou a nossa chegada Logo apareceram o prior, D. Pedro e um
rancho de saracoteantes e ramelosos criados e capelães. Todas as nobres
famílias portuguesas vivem infestadas por catervas destes feios dependentes.
Odeio-os, e sempre que os vejo fico mal disposto. Não há maneira de nos vermos
livres deles - para onde quer que vamos, eles nos seguem, rindo, quando nós
rimos, e nada de engraçado se pode dizer sem que alguma centena de dentes sujos
se arreganhem e· nos vejamos empestados do fedor a alho.
Terça-feira, 5 de Junho - (…)Pouco depois de eu regressar do meu
passeio chegaram o grão-prior e seu sobrinho para jantarem comigo. D. Pedro
entretém-se muito com os meus livros e as minhas pedras preciosas e mostra uma
grande sensibilidade para a música Cantámos, tocámos e distraímo-nos vendo
gravuras alternadamente. A noite aproximou-se, sem que nós déssemos por isso.
Acompanhei o tio e o sobrinho a sua casa na minha carruagem e despedimo-nos com
muita saudade.
Sábado, 8 de Setembro
(…)Bezerra passou a manhã comigo discorrendo acerca da amizade que eu
tinha inspirado ao Marialva, e os benefícios que, se eu quisesse, dai poderia
vir a tirar. Quando estávamos sentados no sofá, em franca conversa, entrou o marquês, logo seguido de D. Pedro e do
grão-prior. D. Pedro parecia embaraçado, como se tivesse pensado muitas vezes
em mim desde que nos separámos.
(…). Como a tarde se pôs mais suave e agradável, fomos
vaguear para a quinta até escurecer. A água murmurava em volta das raízes dos
limoeiros. Nem uma folha bulia, a mais profunda serenidade reinava nas matas.
D. Pedro e eu, de dia para dia mais presos um ao outro, corríamos de mãos dadas
ao longo das alamedas, pulando e saltando como corças, agarrados aos azareiros,
cujas flores nos caíam por cima da cabeça. Não há criança de treze anos que
goste tanto de correr e saltar como eu. As minhas pernas e os meus braços são
flexíveis e elásticos como os de um garoto. Posso fazer deles o que quiser sem
me magoar.
Domingo, 9 de
Setembro: Convento de Cortiça (…) Tivemos um gordo jantar, mas a
sobremesa foi real: grandes cestos da melhor fruta. O abade, depois do repasto,
parecia animado pelo espírito de contradição. Eu sentia-me contrariado e
inquieto. D. Pedro prestou-me pequenas atenções . Apetecia-me chorar. Que
infeliz, que aflito eu me sentia, de um lado para o outro, a arrastar os pés.
Todas as esperanças que ontem tinha alimentado se esvaneceram
(..)O abade parecia animado, depois do jantar, de
espírito de contradição e não consentiu que o marquês ou Luís de Miranda
soubessem mais a respeito de D. João V e da sua corte que da do faraó do Egipto.
D. Pedro e eu desaparecemos no meio da discussão a que os frades começavam
ajuntar-se, e trepámos por cima de umas rochas musgosas para uma pequena
rotunda coberta de alfazema Aí nos sentámos, embalados pelo murmúrio· das ondas
distantes, que investiam de encontro a uma encosta a pique
.
Terça-feira, 9 de Outubro -A minha excursão a cavalo
esta manhã foi curta. Fomos apenas até meio caminho de Colares. Parei em casa
do marquês, muito apressado, como sempre. Quando eu, ao pôr do Sol, estava na
varanda, uma velha irlandesa, que vive com a marquesa de Marialva e que mantém
um pequeno negócio de contrabando sob os seus auspícios, veio, sorrateiramente,
até junto de mim. Queria que eu lhe comprasse um pedaço de linho irlandês muito
barato, etc. Através dela soube da desolação e do desapontamento de toda a
família por causa da minha súbita partida e que, particularmente, D. Pedro
tinha tomado a minha despedida tão a peito que dizia não poder tornar a ver a
minha casa depois de eu a abandonar.
Terça-feira. 27 de Setembro(…). No caminho detive-me para recolher Verdeil, que
eu tinha deixado, ao passar, em casa do marquês. D. Pedro veio logo a correr,
mal ouviu a minha carruagem. A doença da irmã tem-no obrigado a estar em casa,
mas, como ela já vai melhor, espero vê-lo retomar a sua liberdade.
Segunda-feira, 22 de Outubro (…) Os meus sonos foram
interrompidos e agitados. A minha alegria de ontem era grande de mais para
poder ser duradoura Tive medo de uma mudança. Passei por casa do marquês, no
meu passeio habitual, com o coração apertado. Receava que D. Pedro se tivesse
também fatigado muito ontem à noite. Tremia, e, quando prevejo quaisquer
acontecimentos que porventura possam ameaçar as nossas relações, sinto frio no
coração. É certo que estou muito entusiasmado com ele e que começo a ser cego
diante das suas imperfeições. Não sei como hei-de viver sem D. Pedro.
Conversando hoje com Verdeil, fiz quanto pude para lhe
arrancar qualquer concordância com a minha permanência em Portugal, mas
debalde. (...) O meu coração estremeceu. Pensei que D. Pedro estivesse no outro
extremo do salão a ver as minhas gravuras. Entrei. D. Pedro não estava.
Percorreu-me um calafrio de desapontamento e senti-me incapaz 398 de abraçar o
grão-prior com aquela cordialidade que me merece a sua afeição por mim.
À mesa, o abade disse-me que D. Pedro tinha sido
obrigado a acompanhar à Pena a mãe e a camareira-mor, mas que ele lamentava,
sinceramente, não ter vindo visitar-me, e dissera a toda agente lá em casa que
fora ontem a jornada mais feliz da sua vida, que todo o dia se tinha passado
muito agradavelmente, mas que ob momento de que ele mais gostara fora aquele em
que andara a passear, de cá para lá, com o seu amigo mais querido.
Devo confessar que esta informação me encheu de
alegria e que me senti vitorioso. A ideia de que a minha afeição era assim tão
ternamente correspondida emocionou-me tanto que nem pude comer. Verdeil teve a
bondade de preparar uma reunião para amanhã, de modo que eu e D. Pedro
estejamos toda a manhã juntos 400. Amanhã! Amanhã! D. Pedro gosta de mim! Já
lhe senti a doçura dos lábios. Os seus queridos olhos já me confessaram o
segredo do seu coração. Depois de jantar senti-me num tal estado de excitação e
impaciência que não pude estar quieto. Andei de um lado para o outro da
casa.
Terça-feira, dia 23 de Outubro (…)O sol acordou-me
cedo. Estive uma hora a revolver-me, de um lado para o outro. Mal me levantei,
apareceu o grão-prior - sem D. Pedro. Disse-me muitas coisas a respeito de
dores de cabeça e lassidões e contou-me que o pequeno, que ontem trepou até à
Pena a pé, não podia mexer-se hoje pela manhã e que estava cheio de mimos à sua
volta (…) . O tempo está a mudar; nuvens de chuva ocultam o Sol. Quero lá
saber. Vou meter-me na carruagem com o grão-prior, e pelo menos terei a
satisfação de falar do querido Pedrinho.
Quarta-feira, 24 de Outubro. (…) Em casa do marquês,
onde eu parei, no meu regresso a casa, encontrei todos à mesa. D. Pedro, na
presença do seu favorito, vigia todos os meus olhares. Corou algumas vezes. Nos
seus olhos indescritivelmente ternos havia uma espécie de nebulosa suavidade.
Arranjei coragem para pedir ao marquês que o deixasse acompanhar-nos, a mim e
ao tio, à Peninha, amanhã, se o dia estiver bonito e sem nuvens. Depois estive
algum tempo com o meu amigo, até ele ser obrigado a ir para o palácio. Voltei
para casa, para jantar. O grão-prior em breve me seguiu e sentou-se connosco à
mesa. Eu esperava D. Pedro, e quando a porta se abriu e seu tio apareceu
sozinho, senti um tal frio no coração que não pude comer. Passei a tarde
melancólico e agitado. (…)
Quinta-feira, 25 de Outubro(…) Depois do
pequeno-almoço saí na sege para recolher o grão-prior e D. Pedro, de acordo com
o que tinha ficado combinado ontem. Encontrei-os a pé na estrada, que vinham ao
nosso encontro. Pareceu-me que D. Pedro tinha um ar abatido, mas julguei ter-me
enganado. No entanto, fosse como fosse, o nosso projecto de passar o dia juntos
caíra por terra. A Rainha ia nesta tarde merendar ao pavilhão do marquês, e o
meu pobre amiguinho era obrigado a esperar por ela até às três horas e não
podia jantar comigo, nem nós teríamos tempo de ir até à Peninha.
(…) D. Pedro e eu trepámos por entre as moitas e apanhámos
bagas de arbustos, neste venturoso clima, quase tão grandes como as ameixas e
reluzentes como vermelhão. Havia uma tal serenidade hoje no ar e uma tão afável
suavidade nos raios do Sol que eu julguei que todas as almas sentiriam paz e
contentamentos, inclusivamente a minha Ai de mim, uma negra nuvem de
recordações me ensombrou! Para vergonha minha, no entanto, ainda que se diga
que eu sou insensível aos encantos da paisagem que tinha diante dos olhos,
senti-me desgostoso comigo próprio, com o meu companheiro e com tudo o mais que
existe na terra e nos céus. É de crer que eu não estivesse, depois, com
disposição para divagar pelo meio dos pinhais ou para saborear o gosto das
bagas de arbustos que D. Pedro comia com avidez.
Passei, apressadamente, pela quinta, saltei para cima
do meu cavalo e galopei por ali fora, deixando que D. Pedro se desembaraçasse
como pudesse. Foi a sua resignada indiferença que me encheu de indignação - em
vez de lutar contra a estúpida obrigação de ter de aturar a Rainha aquela
tarde, ou de mostrar qualquer sombra de desapontamento, limitou-se a fazer urna
pequena alusão ao facto de a sua presença ser necessária, e submeteu-se, com a
estúpida mansidão de um carneiro, pronto a aceitar a Pastagem para onde o
levam. Detesto do fundo da alma um tão passivo carácter, e vou tentar, pelo
menos, arrancar, pela raiz, a minha afeição por D. Pedro.
Segunda-feira, 29 de Outubro (…)O conde, depois da
ceia, andou a saracotear-se ao luar pelos terraços, onde eles jogavam a
cabra-cega e se divertiam como crianças. A varanda é coberta pela copa de altas
árvores. Devia ter sido uma espécie de conto de fadas para os Hornes. Como de
costume, lá fui a casa do marquês, cujas feições se iluminaram no momento em
que eu entrei. D. Pedro apareceu, de certo modo envergonhado da sua frieza, e
ali ficou - como um escravo - junto ao sofá, onde seu pai e eu nos sentávamos.
Tratei-o com um poucochinho de amabilidade e pareceu-me vê-lo reanimar-se.
Quando eu parti, segurou-me no estribo.
Quarta-feira, 31 de Outubro – (…). D. Pedro, quando eu
passava a cavalo Sintra, veio atrás de mim. Senti-me melancólico e opresso.
Havia nas suas maneiras mais franqueza do que eu esperava
Quinta-feira, 1 de Novembro – (…). Fomos no carrinho à
quinta do marquês, que fica a cerca de um quarto de milha da sua casa de campo,
e aparecemos de improviso a D. Henriqueta e a um rebanho de criadas que com ela
tinha vindo merendar numa aconchegada clareira, entre loureiros e limoeiros. D.
Henriqueta estava muito bem disposta e nas suas sete quintas. D. Pedro foi-me
colher ramos de arbustos: Apesar da sua passividade, não posso deixar de gostar
dele. O pai trata-o muito asperamente, subjugando o pouco de energia que nele
há com palavras duras e olhares severos. O pobre pequeno, creio-o bem, sente
mais simpatia por mim do que por qualquer outro ser humano, à excepção de D.
Henriqueta Não tem amigos, não tem companheiros, não tem oportunidade alguma de
se distrair, excepto quando vem a minha casa Se ele ousasse, pudesse ele subjugar
a timidez que o domina, estou convencido de que se lançaria nos meus braços.
Segunda-feira, 2 de Novembro (…). Depois do jantar, a
família foi tratar dos sacos e das bagagens. D. Pedro e eu começámos a andaª
muito amigos, um atrás do outro. Acompanhei o marquês na sua sege.
Segunda-feira, 23 de Novembro (…)Depois de jantar
fomos para o seu palácio. A marquesa estava sentada no meio de uma roda de
criadas e criados, os quais, à semelhança do coro numa tragédia grega, pareciam
compartilhar os sentimentos dos seus amos e lamentar a minha partida D. Pedro
saiu dos aposentos da irmã e abraçou-me com as lágrimas nos olhos. Eu estava
comovido e foi a custo que me refreei, para não romper a chorar.
Sábado, 24 de Novembro – (…) D. Pedro, percebendo,
talvez, que eu me estava a interessar muito pelo primo, depois de eu o
repreender por ele dar pulos tão atrevidos, suplicou-me que o levasse ao Teatro
do Salitre, onde havia um camarote guardado para nós, às ordens do marquês. Ora
aconteceu que este camarote ficava exactamente defronte de outro, onde escavam
instalados Walpole e a sua gente. O teatro, excepcionalmente, estava à cunha,
em virtude de lá se encontrarem, em toda a pompa, Sua Majestade e a pequena
infanta D. Carlota, tão travessa e brincalhona como Duarte. O príncipe do
Brasil e O. João, durante todo o espectáculo, só abriam a boca para bocejar.
Referências a William Beckford -Em Portugal
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