26 de Novembro de 1975 - Há 49 anos 37 dias depois de ter sido largado um pouco a norte da Ilha de Ano Bom - Jorge Trabulo Marques
Aproximação a uma praia da região de Bococo, a sul da Ilha de Bioko - Guiné Equatorial - 26 de Novembro de 1975 - Era já noite e não pude acostar. Na manhã seguinte, descobriria, na mesma orla, algures para oeste, um pequeno areal negro onde pude finalmente desembarcar.
As horas magníficas que ali passei durante a manhã, naquela pequena enseda luxuriante - qual aspirante a Robinson Crusoe e depois a caminhada pela floresta que me levaria a uma finca de cacau, a forma amistosa como ali fui bem recebido a contrastar com o comportamento desumano das autoridades que, mesmo extremamente debilitado, nesse dia à noite, me levariam para os calabouços de uma esquadra, sob supeita de espionagem, tendo, no dia seguinte, sido conduzido algemado para a então mais temível cadeia de África - a tenebrosa Blach Becah - Os relatos, dessas vicissitudes por que passei, sob o mando de Macias Nguema, não ficam atrás dos dias de incerteza e de angustia vividos ao longo de intermináveis dias e noites na vastidão do Golfo da Guiné Equatorial, mas, para já, veja como foi a minha aproximação a terra, após tão longo e penoso calvário de tormentosos dias e noites de incerteza.
A manhã surgiu cinzenta e quase morta, sem a mais leve aragem a quebrar a sua triste monotonia. Por detrás do horizonte brumoso, a custo desponta, de quando em quando, o pálido disco solar. A nordeste, vejo ao longe contornos de terra, altas montanhas cobertas por um espesso manto de um verde escuro, cujas cumeadas ora se cobrem ora escondem sob densos nevoeiros ou claras neblinas, visão, aliás, reconfortante, porém, fisicamente, ao mesmo tempo, tão próxima como distante. Contornos de uma costa que toma o aspeto de um enorme triângulo, recortada por uma enorme baía. Mas não estou ainda bem certo se é o continente ou Bioko - a Ilha de Fernando Pó. As correntes mal se sentem mas arrastam-me ao longo dessa mancha, em vez me levarem na sua direção
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À popa e ao longe e a sul ia ficando Ano Bom |
Optei pelo regresso a S.Tomé - E, navegar no Golfo, em plena época das chuvas e dos tornados, numa frágil canoa, era opção quase suicida, de vida ou de morte - Apesar de tudo, quis o destino que, mesmo tendo sido atingido por violenta tempestade, logo na primeira noite, que me causaria a perda de quase todos os apetrechos e víveres, fosse um homem de sorte.
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Duário de Bordo - É manhã do 37º dia. Ainda me encontro no mar...Estou partido!...Tenho o estomago metido para dentro. Não tenho nada na barriga... Estou realmente bastante fraco!...Estou mais próximo de terra... mas os ventos não me têm ajudado.
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Oh, se pudesse ir a nado!... Mas não posso. Sinto-me muito fraco, cheio de fome, mas não me rendo. Estou confiante de alcançar anda hoje, terra firme, chão seguro!.. A bússola dá-me a leitura de todos os quadrantes, porém, não podendo dispor de meios para calcular a minha posição, fico sem saber onde estou. No entanto, de uma coisa estou certo: a terra está ao alcance dos meus olhos, estou muito próximo!... E tão longe de a poder alcançar, eu já me encontrei!...
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Quando fiz a viagem de S. Tomé à Nigéria, de manhã, ao acordar, a borda da canoa parecia um autêntico pombal. Registei belas imagens: ao regressar a S.Tomé, deixei-as na redação de uma revista, esta entretanto extinguiu-se e perderam-se.
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Mais umas remadas, ó Jorge!...Vá lá!.. Tens a terra, ali a quatro ou cinco centenas de metros!... Dobra-te sobre o remo!.. Aperta o cinto e não desistas!... De modo algum, vou desistir... Se não desisti, até agora, como poderia desistir com os perfumes, balsâmicos, vindos da floresta, a revigorarem-me os pulmões e o meu coração?!...Tenho de lá chegar, antes que anoiteça!... Tenho de me embriagar com os aromas e as fragâncias da sua luxuriante verdura!...Vamos!...Coragem!
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E lá vou remando, esforçando-me o mais que posso, dando tudo por tudo. Só Deus sabe com que inaudito esforço. Ora tombaleando a bombordo, ora a estibordo. Encurtando, pouco a pouco, a distância que me separa do recorte da íngreme encosta verdejante, que se eleva aos meus olhos. O arvoredo já não é propriamente um emaranhado denso e uniforme, de um verde escuro. Por entre a brenha densa do espesso manto arbóreo, que se ergue desde a orla até perder-se nas névoas de uma elevada montanha, notam-se, de onde em onde, vários matizes coloridos, que vão do amarelo ao vermelho, a contrastar a uniformidade verdejante. Ouço perfeitamente o marulho da rebentação espumosa. Mas ainda não consegui divisar um palmo de areia.
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Ainda não parei de remar. Ando para aqui de um lado para o outro a tentar descobrir uma qualquer língua de areia mas é tudo aprumo. A floresta é já uma mancha negra. Ainda bem que o tempo está calmo, quando não era atirado de encontro às rochas. Na viagem que fiz de S. Tomé à Ilha do Príncipe, ao pôr do sol, encontrava-me junto a um promontório. rochoso e escarpado. - Impossibilitado de me aproximar, lá tive que me escapar para o mar para não ser atingido pelo tornado, que estava a formar-se àquela hora no horizonte. Com a costa, ali a dois palmos!... Que noite mais horrível, meu Deus! Mar tumultuoso e negra escuridão, que os relâmpagos iluminavam e me deixavam quase cego.Não há palavras!...
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Não tenho a certeza se a floresta é habitada. Pareceu-me ter visto alguns focos de luzes por entre o arvoredo. Mas deve ter sido ilusão minha. Embora, apenas já se distingue uma massa escura, - , sim, agora só se ouvem os sons da floresta, o piar da passarada e o vai e vem das águas, batendo e recuando não se sabe aonde, contudo, os perfumes inebriantes de toda esta atmosfera, rica e acolhedora que me envolve, a pujança e a sua beleza que se adivinha, misturados com a doce e quente marezia, transmitem-me uma serena paz, uma tranquilidade que há muito não sentia. Porém, com muita pena minha, tenho que ficar mais uma noite no mar. A costa é profunda. Tive que lançar várias vezes a âncora até encontrar a profundidade a que pudesse chegar a corda que amarra. Mas, por fim, lá descobri, junto a uma espécie de ilhéu, o sítio onde a âncora se prendeu. Tenho o estômago um bocado rijo, devido ao coco, às folhas e frutos, que andavam a boiar e que comi.Certamente que não vai ser fácil adormecer. Espero é que não surja mau tempo e possa retemperar um pouco as minhas forças.- Mas, antes de me deitar, ainda vou verter para o gravador o meu primeiro testemunho, junto a esta encosta paradisíaca.
"Mãe: Venho de longe e cansado
(...) Que me resta da fluata que inventei?" - Fernando Grade
(...)"É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!... António Salvado, in "Difícil Passagem"
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