Jorge Trabulo Marques - Jornalista e investigador
Na minha adolescência e nos arredores da minha aldeia, havia um ritual pagão, que se realizava, em certas noites do ano, no interior do terreiro do antigo solar do Vale Cheiinho, situado no alto das Quintãs, termo de Mêda, mas que sempre pertenceu a proprietários da minha freguesia, Chãs. Foz Côa - Das povoações de Quintãs, Relva, da freguesia de Longroiva, naquele tempo, haviam umas quantas "irmãs" que ali também se juntavam - Além das que vinham de Tomadias e Santa Comba - Concelho de Foz Côa.
Era um culto, constituído apenas por mulheres de idade, não casadas, que viviam das jeiras (das mondas e das ceifas) ou de atividades ambulantes, que ali se reuniam, vindas de várias aldeias limítrofes, acompanhadas por cachopos, crianças, vestidas com batas azuis - Elas vestiam de negro e embrulhadas em xailes escuros
Creio que também ainda por lá perpassa o espírito de algumas das vítimas da intolerância católica. Pois a igreja nunca compreendeu, nem perdoou que, uma tal quinta, centenária, onde não faltava nada - desde a forno do pão, lagar de vinho e de azeite, cabanal para gado, fonte e caminho romano -, não existisse uma capela. E a razão era simples: é porque, ali, quem vivia naquele tão frondoso e fértil vale ou canada, festejava mais o espírito da Terra, a Mãe-Natureza e as suas divindades. Tal tradição - mesmo depois da quinta cair no esquecimento e em ruínas - persistiu até aos anos 60. Era um local de culto e de peregrinação por membros das várias irmandades existentes nas freguesias vizinhas.
Halloween é um termo importado dos países anglo-saxônicos, É uma festa pagã que pretende relembrar e festejar antigos cultos pagãos. Só que, lá tal como cá, é praticamente mero folclore, uma espécie de diversão carnavalesca. E poucos se lembrarão de que, embora seja uma festa associada a momentos de prazer e de misticismo, traz atrás de si memórias de tenebrosos tempos, em que milhares de vidas foram torturadas, enforcadas ou queimadas, por não seguirem os ditames do ocultismo católico, acusadas de práticas hereges.
Levado pela curiosidade da minha inocência, tomei parte nesses cultos e guardo curiosas recordações. Aprendi a gostar da noite (claro, no campo), a contemplar a sua beleza noturna e o seu silêncio. Por isso, e na medida do possível, não deixo de lá me deslocar, entre outras peregrinações que costumo fazer ao Monte dos Tambores. Há, no entanto, quem, depois do pôr-do-sol, nem sequer ouse passar fronte ao enorme portal que dá acesso ao terreiro amuralhado, receoso de que por lá lhe apareça o chamado “homem do gorro vermelho”
Ninguém dizia nada a ninguém... O culto era secretíssimo. Nem as moscas podiam saber.... Cada irmã levava o seu rapaz, o seu menino: eram as nossas madrinhas. A do baptismo era para esquecer... Diziam-nos que era uma barbaridade deitar água gelada da pia baptismal na cabeça dos bebés... Eram contrárias a essas práticas cristãs.... E também não se casavam nem iam à missa...
Oh, como eram tão alegres e folionas e como nós nos ríamos às gargalhadas das suas galhofas e traquinices, nos divertíamos tanto!...Sobretudo, quando nos beijavam o rabo (claro, de calças vestidas) e, uma das irmãs, a mais velha, depois de dançarmos e de darmos umas quantas voltas à volta do galo, de patas atadas e pousado junto ao defumador das aromáticas essências (alecrim rosmaninho, entre outras ervas ) ali bem no centro do terreiro, sim, se enchia de genica (como a mestra, a grande chefona, a madre-superiora) e se aprestava para torcer e degolar de um só golpe a pobre ave, cujo sangue era vertido imediatamente para uma tigela e dado a beber a todos os participantes. A princípio, não lhe achei piada, mas depois, como se ouviam sempre algumas chalaças, até me pareceu natural e lhe encontrei alguma graça....
Recebi educação católica, foram esses os meus primeiros passos. E até andei dois meses no seminário, em Mogofores, até que fui expulso, devido a uma bebedeira de medronhos e quando, em confissão, revelei os rituais que praticara em criança. Admiro Cristo como Homem mas não o imagino um Deus Absoluto. Ou um Seu Enviado à Terra. Filhos de Universo e de um Deus Maior somos todos nós. São os oceanos, os continentes, todos os seus vivos e corpos aparentemente inertes. É, no fim de contas, aquilo a que, no meu modesto ponto de vista, resumo como sendo a Inteligência Universal.
Gosto da sua imagem, natural e humana, vestido com as suas lindas túnicas e até de imitá-lo em alguns dos seus gestos quando envergo roupagens mais ou menos semelhantes; porém, desagrada-me e deprime-me vê-lo crucificado e coroado de espinhos, como um penoso castigo para toda a vida. Porém, desde que, ainda rapaz, me iniciei no culto aos deuses mais antigos da humanidade e das suas simbologias - o Sol, a Lua, os Astros, o Mar e as Pedras - sim, no fundo, nos símbolos que mais identificam o homem
Outras vezes, no entanto, nem sei bem o que sou: vacilo até à descrença e ao agnosticismo. Gosto de música sagra e de coros religiosos, seja qual for a religião. Respeito, porém, todo os credos e cultos - e tenho, em todos, bons amigos - o que não significa que cerceei a minha liberdade de expressão.
Uma vez o meu pai (que madrugou mais cedo para ir vender uns machos e umas vacas a uma feira) , apanhou-me à entrada de casa... Foi numa noite gélida de Inverno. Era quando mais saímos, visto as noites serem mais longas... Perguntou-me donde é que eu vinha àquelas horas... Eu disse que tinha andado a jogar o tiroliro com os outros rapazes no adro... Ele achou que era muito tarde e deu-me uma valente sova com a cilha da albarda.. Sim, foram tempos difíceis mas trazem-me saudades quando ali vou....
.Não há passeio mais agradável e espiritual que descer e subir aquela calçada romana pela calada da noite e respirar os alvores e os perfumes de uma fresca e orvalhada madrugada.Aliás, é um forte apelo a que não resisto, sinto essa intrínseca necessidade.
Está-me no sangue.... Em recuar aos joviais tempos do pé descalço pelos carreiros e caminhos das fragas... nos penhascos e quebradas do maciço planáltico, onde termina o granito e começa o xisto, noutra área diferente dos arredores da minha aldeia. E onde faço um misto de investigação, devaneio e peregrinação espiritual mas também artística: registos nas pedras (esculpo) e fotografo (fotografo-me) na sítios onde me sinto melhor e mais identificado com o meu passado e as minhas ancestrais raízes.
A paisagem, neste local, a bem dizer não mudou e o chilrear dos pássaros na Primavera ainda é o mesmo, entre outros bichos e aves, que ali param todo o ano, por vezes, até me parece que ainda me soam aos ouvidos os coros e a voz de comando da nossa irmã mais velha... "Meninas" e meninos! Vamos lá à dança e à contradança!!... Três voltas para a frente e três voltas para trás!..
Tempos que não voltam e não se repetem!... Que saudades dessa liberdade e dessa misteriosa aventura nocturna.!... Voltar lá, é como se ainda fosse garoto e estivesse a reviver os anos da inocência: a ida à meia-noite e a hora do regresso a casa...Quando nos aproximávamos da Rua Roda D'Àlém, toca a dispersar!... cada um ia ao seu destino... Sempre, muito antes da alvorada e do nascer do sol. Para ninguém correr o risco de ser visto... E sem os pais saberem, pois então!... Nessa noite a porta ficava só encostada;havia o cuidado de não a deixar fechar à chave...
MILÉNIOS DE ATRASO, DE SOFRIMENTO E DE OBSCURANTISMO
"O Homem, no mundo, profana a criação. Profana os gestos, os sons, as cores, profana sobretudo as palavras que usa, levianamente, na tagarelice ou com perversidade, na mentira, no ódio ou na calúnia. Profana os números, os sinais matemáticos, ao utilizá-los em operações diabólicas de magia negra científica (fabrico de instrumentos de morte, de engenhos de destruição, de explosão). Profana o trabalho ao transformar o que fazia participar o homem, com entusiasmo e alegria, na actividade criadora de Deus, numa tarefa de escravo condenado aos gestos mecânicos do trabalho, à sujeição, na sinistra atmosfera das nossas fábricas. O homem profana os meios de expressão, a palavra, a literatura, a arte, a música, a pintura, as ciências, já não servem para dignificar o ser interior, para elevar o pensamento, para conservar a alma numa atmosfera idealizada de beleza e sabedoria, mas para procurar prazeres vulgares, para alimentar polémicas cheias de rancor"
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