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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Dia dos Fiéis Defuntos - Meu tributo de náufrago sobrevivente aos náufragos de todos os tempos - Lembrando as incontáveis vidas que foram sufocadas e engolidas pela violência das ondas salgadas



Jorge Trabulo Marques - Jornalista 

Neste dia, dia 2 de Novembro de 1975, andava eu perdido numa canoa de S. Tomé, há 12 dias. Mas só alcançaria chão-firme, ao 38º dia - Ao fim do 11º dia, vertia eu para o meu diário gravado (num pequeno gravador que logrei resguardar dentro de um caixote de plástico, um simples contentor do lixo) estas palavras:


Tal como já tive oportunidade de dizer, eu sou um náufrago!... Náufrago na medida em que não posso dar uma direção a minha canoa! . Perdi o remo e outros utensílios no tornado. O remo improvisado, não me ajuda quase nada... Estou ao sabor da corrente e dos ventos!.. (...) Eu admiro, por isso, esses pescadores de São Tome e Príncipe, que por vezes desaparecem e vão dar a costa, depois de muitos dias, sem praticamente terem agua, sem nada. Enfim, enfrentando muitos perigos, como eu, tenho enfrentados Eu admiro-os! E é realmente preciso ter muita moral, muita elevação de espirito!...




Temos que acreditar em algo superior a nós. Numa força qualquer que nos proteja. Porque, efetivamente ,há momentos em que não nos sentimos nada! absolutamente miguem! Eu não me sinto ninguém! Eu não sou nada! Eu às vezes ate procuro quase falar com as coisas, com as pecas da minha canoa!... Porque eu assemelho-me as mesmas pecas, aos mesmos elementos! Portanto, eu vejo que há uma força da qual nós dependemos e que nos orienta ,que determina o nosso” destino... Mas que nos impele a lutar e não nos obriga a ficar de braços cruzados.

AOS NÁUFRAGOS DE TODOS OS TEMPOS.

Eu, humilde navegante e aventureiro,
em viagens sob azuis de além mar,
e em águas erguidas em revolta,
ou em podres calmarias de inquietar,
aqui vos evoco, vos recordo,
como quem conhece a ânsia da partida
e, depois, em noite infinda, em noite morta,
apenas tem por companhia mar e céu
em negro mar de véu e tristeza infinita,
enfim, a cruel certeza de quem não volta!

Náufragos! Dos tempos idos e da actualidade
de odisseias ignoradas e esquecidas!
Heróis sem nome, sem pátria e sem fronteiras,
que do fluxo e refluxo das marés fizestes as vossas veias!...
Viajantes transitórios do mar passado e do mar actual!
Gente tisnada e crespada por mil sóis, ventos uivantes,
diluvianas chuvadas!
.
Gente a quem a imensidade incerta devolveu a inocência
mas cuja sorte a condenou ao suplício da mais atroz morte!
Gente limpa de olhos e de alma de tanto olhar o mar e o céu!
- Todavia, gente que a ira das tormentas e a audácia da aventura
fizeram com que a fundura do abismo fosse a própria sepultura!...

Irmãos! Aqui vos evoco e me vergo em turbado pranto
evocando o plangente canto de poetas marinheiros
trinando a dolente lira de tão triste ventura e negro fadário
Que, em infindável rosário de mares estranhos, medonhos, irados,
vosso corpo vivo arremessaram, sorveram, para sempre sepultaram!

Aqui vos recordo com lágrimas de dor e mágoa pura
por tão absurdo golpe e duro sofrer - por tanta desventura!...
Não, não venho dizer-vos outros versos! Versos a valer?!...
Estes, perderam-se-me no mar! - Ficaram-me por lá todos!
Além disso, senti-os demais para agora os poder dizer!
Senti-os no interior das trevas nas muitas coisas tristes que não vi
ou vagamente descobri, mas profundamente senti! - Senti-os
também nas muitas alegrias, que intensamente vivi
e claramente vi com olhos de ver!

Tão pouco, venho acalentar
vossas tão martirizadas almas - Não!
Porque, agora, o que as vossas almas mais querem,
é que a memória não se apague, é paz e descanso eterno!
- Bastou-vos o percurso lúcido através da voragem
daquele rouco e tumultuoso inferno!
Aliás, de versos, também, cada alma,
por si e à sua maneira, os viveu
a transbordar de mar e do céu!

Excerto de um extenso poema, dedicado aos náufragos, vertido em lágrimas após ter regressado a Portugal e ao lembrar-me daqueles dias de infinita incerteza.

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