Jorge Trabulo Marques - Jornalista e antigo navegador solitário
Poema transcrito de outro blogue -- Pormenores da aventura em http://canoasdomar.blogspot.com/2019/11/perdido-no-golfo-da-guine-37-dia-estou.html …. http://canoasdomar.blogspot.com/2019/11/perdido-no-golfo-27-de-nov-1975-38-dia.html
SÓ A VOZ DO MAR!...
Levanta-se o dia. O Sol resplandece!...
O azul do espaço toca o infinito!...
Os meus pensamentos bóiam à flor das águas...
vagos, indefiníveis, indistintos!...
Beleza vã e enganadora!...
É domingo. É o sagrado dia do descanso!
Repicam os sinos! - Não os ouço!...Imagino-os!
Aqui só se ouve a voz do mar!...- Do seu dorso
apenas me separa a grossura de uma frágil tábua!...
Que, todavia, é um madeiro escavado - Este é o meu soalho!...
Mas eu sei que lá longe o dia é uma promessa!...
Que, todavia, é um madeiro escavado - Este é o meu soalho!...
Mas eu sei que lá longe o dia é uma promessa!...
É a hora de todos os fiéis devotos se dirigirem à igreja!...
– De irem à santa missa! Entoarem os seus cânticos
e consagrarem as suas orações ao Altíssimo!...
- Um gesto humilde e piedoso, em torno da liturgia cristã,
onde cada um vai buscar o reconforto,
que o fará ao mesmo tempo retemperar
que o fará ao mesmo tempo retemperar
das rudes agruras e fadigas da vida! - Oh! ares límpidos!
Puríssimos espaços azuis! Quantos sacrifícios e fadigas
Quanto suor já testemunhaste através dos olhos
devorados pelo sol dos esplendores deslumbrados
na imensidade ardente e calma dos largos espaços!
Puríssimos espaços azuis! Quantos sacrifícios e fadigas
Quanto suor já testemunhaste através dos olhos
devorados pelo sol dos esplendores deslumbrados
na imensidade ardente e calma dos largos espaços!
Cedo perdi os fervores religiosos que me foram imprimidos
na Escola Primária e na catequese - Cultivei outros
Os caminhos de chegar a Deus ou descobrir o sentido da vida
são inúmeros - Não existe uma verdade absoluta
- Tudo se transforma. Tudo tem um principio,
um meio e um fim. E o que agora é uma realidade,
amanhã, poderá ser outra completamente oposta.
Não há credos falsos nem credos inteiramente verdadeiros.
Deus deu-nos a liberdade de cada um poder interpretar
o mundo à sua maneira e de seguir o seu próprio caminho.
Se assim, não fosse - ter-me-ia aconselhado a não enfrentar
os perigosos caminhos do mar - Mas não se importou.
Não lhe ouvi sequer uma palavra, de prudente aviso,
que me dissesse - Jorge! Não Vás!...
E a que eu pudesse contrapor: Oh! Mas eu vou!
na Escola Primária e na catequese - Cultivei outros
Os caminhos de chegar a Deus ou descobrir o sentido da vida
são inúmeros - Não existe uma verdade absoluta
- Tudo se transforma. Tudo tem um principio,
um meio e um fim. E o que agora é uma realidade,
amanhã, poderá ser outra completamente oposta.
Não há credos falsos nem credos inteiramente verdadeiros.
Deus deu-nos a liberdade de cada um poder interpretar
o mundo à sua maneira e de seguir o seu próprio caminho.
Se assim, não fosse - ter-me-ia aconselhado a não enfrentar
os perigosos caminhos do mar - Mas não se importou.
Não lhe ouvi sequer uma palavra, de prudente aviso,
que me dissesse - Jorge! Não Vás!...
E a que eu pudesse contrapor: Oh! Mas eu vou!
a tão vasta solidão e a tão profundos silêncios, onde se gritasse
ninguém escutaria os meus gritos, ninguém me poderia valer,
tenho ainda hoje a impressão, que naqueles momentos terríveis
ouvi, dentro de mim, uma qualquer misteriosa voz que me disse:
Jorge! Não desanimes!... Luta e não desistas!..
Seja como for, com ou sem quaisquer avisos divinos ,
o certo e que, daqueles meus verdes tempos de criança,
ficou-me um lastro indefinido e imperecível,
mesclado de várias divinizações - Que no mar
andaram comigo sempre à solta - Pobre do náufrago!
Vale-se de tudo. Tudo o assombra ou ilumina.
Triste de quem enfrenta o abandono e a solidão.
A fé e a confiança o salva! O desespero e a descrença,
é meio caminho andado à perdição, à morte e à sepultura.
No entanto, mesmo o náufrago, é incapaz de traduzir por palavras
os múltiplos sentimentos e estados de alma,
que sobre o seu corpo e espírito se abatem.
Oh, não estou desesperado mas vejo que nem sempre
posso dar o rumo que quero à minha piroga:
a tempestade levou-em quase tudo - Por isso,
face a tantos perigos e ameaças, afloram-me à mente,
pensamentos desencontrados, as mais díspares emoções
- Umas vezes de fé e de esperança, outras
de dúvida ou descrença ! - Oh, quanto não daria
para celebrar, com os meus,
a tranquilidade e a paz de um santo domingo!... - Num ímpeto de alma
e de intimidade, percorrer distâncias, fundir-me
nos horizontes que me cercam,
desde os próximos aos mais longínquos e transladar-me,
fisicamente, espiritualmente, a esses amáveis lugares
da minha infância e adolescência - Apesar de saber
que a vida, ali, é bem madrasta!... Amarga e difícil!
Por isso, muitos vão procurar o seu ganha pão
em paragens longínquas do Brasil, em França, em África!
– Foi assim, em busca de melhor vida, que um dia parti
– Foi assim, em busca de melhor vida, que um dia parti
em demanda de uma ilha nestes mares, em cujos águas
me encontro agora à deriva!....Desconhecendo, a que praia,
me encontro agora à deriva!....Desconhecendo, a que praia,
a que desconhecido lugar poderei aportar - Por isso,
vogando que vou nesta incerteza, nesta contínua errância,
quanto não daria para agora poder contemplar
a beleza incomparável da linda Ilha, donde parti
ou poder regressar à liberdade dos tempos
dos meus humildes dias de criança.
Sim, relembro a alegria das airosas
manhãs primaveris da minha criação
manhãs primaveris da minha criação
e tenho ainda bem presente o adro ao domingo....
Vejo a igreja, o campanário e o velho negrilho
no centro do adro - E revejo-me à sombra dele
naqueles lânguidos e quentes dias de Verão.
Ou nas tradicionais Festas de Nossa Senhora de Assumpção!
Todo ele enfeitado no centro do coreto! - Que dias maravilhosos!
Com os foguetes a estralejar e a filarmónica
acompanhando a procissão - Ou já a despedir-se
e a dar a volta ao povo, parando e tocando
junto à casa de cada novo mordomo.
Oh, quem não se lembra de 15 e 16 de Agosto?!
Quem é que, ali, não teve desses dias as melhores recordações?!..
Dias alegres e felizes, de convívio e de reencontro: dos que emigram
e ali voltam a matar saudades! - Dias banhados de sol
e de longos crepúsculos! - Tão diferentes dos dias incertos
em que agora vogo e me encontro perdido- As noites são sempre iguais:
o dia despede-se rápido e a noite cerrada avança para a claridade do dia,
quase sem me aperceber, sem se dar por isso, sem alvorada.
- Mal se põe o sol, anoitece. Logo o mar e o céu se cobrem de penumbra
e, à minha volta, todo o horizonte se tolda e dilui-se em sombras e trevas.
Novembro de 1975 - Domingo
O meu calendário no mar
não é todavia o mesmo de quem pisa terra firme -
Conto os dias e gravo-os nos meu diário
(sim, disponho de um modesto gravador que guardo
num simples caixote de plástico, igual aos do lixo)
mas não tenciono fazer o registo do dia da semana ou do mês.
Não perdi o tino mas vivo num permanente mar de dúvidas e angústias:
- pois não tenho a certeza se a minha piroga resistirá
às constantes investidas das vagas - E o que agora me interessa
é registar o tempo de vida em que assim vivo:
Um violento tornado fez-me perder os remos e quase tudo
- Fiquei praticamente desprovido de alimentos e de água potável.
Este suplicio vai durar quase 40 dias. Mas neste momento
ignoro o meu destino, o longo e tormentoso calvário que me espera.
Sirvo-me apenas de uma modesta bússola - Não disponho
de quaisquer outros meios de navegação ou de comunicação.
Sei a direcção pela qual me arrastam as correntes e os ventos.
Por vezes navego, com um remo improvisado,
mas é um trabalho demasiado penoso e quase inglório.
Não sei se estou muito longe, se muito afastado
de uma qualquer das luxuriantes ilhas do Golfo
ou de uma qualquer misteriosa enseada da costa africana.
O que eu sei é que este é o tempo dos tornados!
Das inesperadas e violentas tempestades tropicais!
Quantos tormentos, oh Deus!... Se o barco me largasse
na corrente equatorial, não os enfrentava - azar meu!
Morto ou vivo seria arrastado para o outro lado do Atlântico -
Mas pregou-me uma partida: queria que abandonasse
a canoa e ficasse a bordo a trabalhar
- Mas não era esse o meu objectivo.
Todavia, embora longe dos horizontes
da terra onde nasci, tenho bem presente
na retina dos meus olhos, as ladeiras com os olivais,
com as suas figueiras e amendoeiras floridas, o vale dos areais,
as fragas dos Tambores, cobertas de giestas em flor, a Cova da Moira,
Pedra da Cabeleira de Nossa Senhora, o nosso Lavor do Ferro
e o Vale Cardoso, o Cabeço D'oiro, a Serra,
o Vale das Boiças, o antigo solar
do Vale Cheínho ou do Vale Cheiroso,
que tão perfumado é no tempo das maias.
Oh! e então a antiga Quinta de Santa Maria,
no Côa, onde meu pai nasceu e onde íamos a crestar
as colmeias por altura da Primavera! - E a quinta do Muro,
alcandorada na encosta dos Areais, onde vivi
os melhores dois anos da minha adolescência,
subindo as encostas dos Tambores, a levar
a marmita ao pastor, que ali guardava o gado.
Debruçada sobre os choupos da ribeira,
com as suas folhas a desprenderem-se no seu constante rumorejar
à mistura com os sonoros chilreios e estribilhos da passarada!
As vinhas, depois de vindimadas, colorindo-se
de mil tons e amarelos brilhantes! - Oh,
mas que bela e surpreendente aguarela!
Como agora o meu coração, se enche de lágrimas e se comove!
ao sentir a ausência da saudosa aldeia onde vim à luz do dia e cresci
- Não tanto pela distância que dela o separa - bem longe!
Mas pela imensa e sofrida incerteza de não saber
se a voltarei mais a ver.
Recordo a minha saudosa mãe
a ir lavar a roupa à Ribeira dos Picos,
carregada com o cesto à cabeça - E depois
vejo-a a subir aquela íngreme ladeira...
Mesmo cansada, ainda ir ter que fazer a comida!
- Oh, tão sacrificada a sua vida foi - Já nos deixou
E era ainda nova - Chorava por trás do postigo
quando se despediu de mim: "Filho!
Nunca mais te vejo! - E assim aconteceu.
Parece que avinhava - Eu tinha 18 anos e ela 52.
O DIA EM QUE CAÍ A UM POÇO
Em casa, à mesa, juntávamo-nos seis.
Eu era o do meio. Quem havia de imaginar
que uns anos mais tarde, e não tão tarde quanto isso,
pai e mãe, haveriam partir tão cedo para a eternidade...
E eu haveria de ser um dia o mais velho - Só ficaria
eu e o meu irmão mais novo - Que corajoso
não foi o Fernando, naquele dramático dia
em que eu e a minha imã caímos a um poço!...
Eu estava uns metros abaixo do picanço
a desviar o caldeiro de uma pedra. A vara desprendeu-se
e a minha irmã precipitou-se sobre mim
e rolámos os dois para o fundo - Eu tinha nove,
ela treze, o Fernando sete anitos - Vendo que faltava
a água na regueira, correu em nosso auxílio.
Agarrou-se a uns juncos, estendeu uma cana
à Conceição e depois foi ela que me salvou.
Gritava tanto!... Tanto!...Estranha coincidência...
Foi a um domingo... A 13 de Maio.
No dia de festa nas Tomadias.
Uma manhã tão alegre e tão bonita!....
A meio da tarde, tanta aflição!..
Tínhamos lá ido à procissão.
E, como calhava no caminho,
aproveitamos para ir ao nosso prédio da Serra.
Ela parecia mais aflita de que eu.. Chapinhava
desesperadamente e tentava agarrar-se à margem
Eu estava mais ou menos resignado... Já só via a morte...
Meus olhos turvos e embaciados, só faltavam cerrar-se...
Quando vinha à superfície, afrontado, tossia e soluçava...
E depois fechava a boca para não engolir mais água...
Sentia que nada nos podia valer.... Arregalava os olhos...
Arregala-vos e via que a triste sorte parecia iminente....
Ela gatinhava na margem barrenta do poço.
Mas em vão.... Arranhava a margem íngreme
e gritava por Nossa Senhora de Fátima...
Nossa Senhora de Fátima!!!..Parece
que ainda a ouço gritar... Estávamos longe da aldeia.
E ninguém mais ali nos podia acudir.
Ficou com os dedos todos esfolados.
Nesse dia o José não foi regar a horta.Ficou em casa.
Não sei como não ficámos lá todos!...Sorte a nossa...
Vêm-me as lágrimas aos olhos só em pensar nisso...
Quando me vi livre do poço, nem queria acreditar que estava vivo...
Cambaleava e vomitava água...Parecia um bêbado!..
Mas que ideia agora a minha!.. Porquê essa memória?!...
Não devia pensar em tal episódio: - o afogamento é coisa horrível!
- Voltei a ver essa mesma imagem, quando a canoa
se voltou na viagem de São Tomé ao Príncipe.
Era noite alta... Solidão ameaçadora e escura!...
Adormeci rolando com a minúscula piroga num estranho remoinho...
Tudo era negro... Negro, líquido e tumultuoso...
Até o vento...Que parecia empurrar-me,
envolver-me e confundir-me com as próprias trevas..
Acordei com a estranha sensação de asfixia!..
Água a entrar-me subitamente nos meus ouvidos
e pela boca adentro!..Foi horrível!...
e pela boca adentro!..Foi horrível!...
Autêntico milagre ter escapado.
Deveria ter juízo mas o mar continua a chamar-me!...
Que hei-de eu fazer?!... - Talvez não seja eu o culpado
mas o mar que agora me arrasta...e não sei para onde...
Não sei para que ponto do horizonte ele me leva...
Já me estou a desviar demais... Falava eu do Outono..
Sim, parece-me que ainda estou a ver o meu pai
a lançar as sementes à terra e a lavrar
as encostas da fraga alta, pegando na rabiça do arado,
indo atrás do macho, encosta pejada de fragas,
por entre alguns carrascos e ladoeiros, terrenos agrestes
que, na Primavera, farão despontar as lindas verdes searas,
polvilhadas de rubras papoilas, para que, depois no Estio
se estendam como doiradas e ondulantes mares.
- Oh que dias de fadigas e canseiras!
- Mas também de espanto e descoberta!
Hoje é domingo - Mas que nostálgico e solitário domingo!
Por lá, o Outono já vai adiantado e o Inverno está quase à porta.
- Os dias vão minguando, as noites, mais frias, vão crescendo
- Pelo que as chuvas já terão enlameado as ruas da aldeia,
pois não estão calcetadas como as da cidade.
Usam-se os tamancos - é o calçado mais barato e dos pobres.
Não se atolam tão facilmente. Como é hora da missa,
pressinto que devem estar quase desertas, despovoadas
Ali, aos domingos, a igreja é sempre concorrida.
Porém, o silêncio nunca é completo: os gatos miam
- Os dias vão minguando, as noites, mais frias, vão crescendo
- Pelo que as chuvas já terão enlameado as ruas da aldeia,
pois não estão calcetadas como as da cidade.
Usam-se os tamancos - é o calçado mais barato e dos pobres.
Não se atolam tão facilmente. Como é hora da missa,
pressinto que devem estar quase desertas, despovoadas
Ali, aos domingos, a igreja é sempre concorrida.
Porém, o silêncio nunca é completo: os gatos miam
nos telhados, as galinhas cacarejam e andam à vontade
e há sempre um galo montês fora da capoeira
a ferir o espaço! - E um cão desatinado
que ladra ostensivamente aos ares
a ferir o espaço! - E um cão desatinado
que ladra ostensivamente aos ares
e desencadeia, em uníssono desafino, a ira de outros.
Um azino tresmalhado, dentro ou fora do palhal,
a quebrar o silêncio cósmico - De um momento
para o outro desata a zurrar!...
para o outro desata a zurrar!...
As três badaladas do campanário já foram dadas...
sinal de que as pessoas já entraram para a igreja
e que o senhor padre já vestiu os paramentos,
deixou a sacristia e se dirigiu para junto do altar.
deixou a sacristia e se dirigiu para junto do altar.
Cá fora, não há ninguém, o adro está deserto,
do interior da igreja ressoa um religioso recolhimento.
Alguém tosse ou uma ou outra criança, desata a chorar
no colo da mãe - Sim, ali não há damas a tomarem conta dos bebés,
nem creches nem biberões que substituam o apego e o leite maternal
- O campo absorve quase todos os dias do ano e da vida - Não se descansa.
Só o domingo é sagrado - Mas não inteiramente livre. Há quem trabalhe.
Cumpra as obrigações religiosas e vá regar a horta ou buscar água
no cântaro à cabeça ou nas aguadeiras à fonte .
Mas, antes disso, vai à missa - Há por lá quem pratique
o paganismo às ocultas - Mesmo assim,
para disfarçar a sua heresia, não deixe de mostrar
que não é do rebanho a ovelha mais tresmalhada.
Sim, é hora da missa e a igreja está completamente cheia,
apinhada: - Mas a distribuição dos fiéis não é toda por igual:
os homens e os mais novos, envergando as farpelas domingueiras,
estão à frente, de pé e próximos do altar.
As mulheres, lá mais atrás, cobertas com os seus xailes e lenços negros,
são em maior número e vão até ao fundo da porta principal
-- Entretanto, o celebrante já ergueu os braços
e deu início ao sagrado sacrifício da Eucaristia!...
- Há cheiros e fumos brancos de incenso - Não se usam perfumes.
As roupas têm o cheiro da naftalina - As casas de banho,
quem as tem?!... Vai-se atrás de uma parede.
E ainda bem que o incensório se agita e fumega
nas mãos do sacristão ou ou do senhor abade - Purifica,
diviniza e harmoniza o ambiente.
Ecoam os primeiros cânticos - Paira no ar
não apenas o cheiro do incenso
mas uma mística solenidade...
- O sacerdote, concentrado no seu ofício,
não tardará a fazer o ofertório e a repartir
a sagrada comunhão a quem se aproximar
do interior da igreja ressoa um religioso recolhimento.
Alguém tosse ou uma ou outra criança, desata a chorar
no colo da mãe - Sim, ali não há damas a tomarem conta dos bebés,
nem creches nem biberões que substituam o apego e o leite maternal
- O campo absorve quase todos os dias do ano e da vida - Não se descansa.
Só o domingo é sagrado - Mas não inteiramente livre. Há quem trabalhe.
Cumpra as obrigações religiosas e vá regar a horta ou buscar água
no cântaro à cabeça ou nas aguadeiras à fonte .
Mas, antes disso, vai à missa - Há por lá quem pratique
o paganismo às ocultas - Mesmo assim,
para disfarçar a sua heresia, não deixe de mostrar
que não é do rebanho a ovelha mais tresmalhada.
Sim, é hora da missa e a igreja está completamente cheia,
apinhada: - Mas a distribuição dos fiéis não é toda por igual:
os homens e os mais novos, envergando as farpelas domingueiras,
estão à frente, de pé e próximos do altar.
As mulheres, lá mais atrás, cobertas com os seus xailes e lenços negros,
são em maior número e vão até ao fundo da porta principal
-- Entretanto, o celebrante já ergueu os braços
e deu início ao sagrado sacrifício da Eucaristia!...
- Há cheiros e fumos brancos de incenso - Não se usam perfumes.
As roupas têm o cheiro da naftalina - As casas de banho,
quem as tem?!... Vai-se atrás de uma parede.
E ainda bem que o incensório se agita e fumega
nas mãos do sacristão ou ou do senhor abade - Purifica,
diviniza e harmoniza o ambiente.
Ecoam os primeiros cânticos - Paira no ar
não apenas o cheiro do incenso
mas uma mística solenidade...
- O sacerdote, concentrado no seu ofício,
não tardará a fazer o ofertório e a repartir
a sagrada comunhão a quem se aproximar
da mesa de Cristo e dela se ajoelhar...
A atmosfera é pois de aparente e visível religiosidade...
Perpassa por todos os rostos um silencioso recolhimento
Transparece, algo que os fará esquecer de uma semana de esforços
e de labuta - São ainda os tempos
em que a fé religiosa anda de mãos dadas
com o analfabetismo endémico e algumas trevas.
O povo acorre porque é também esta a única via de ligar
o homem à pedra e à terra, lhe minorar o sofrimento,
no elo comum dos mistérios do divino,
do absoluto e do Universo.
Momento de devoção, belo! Abençoado!...
e de labuta - São ainda os tempos
em que a fé religiosa anda de mãos dadas
com o analfabetismo endémico e algumas trevas.
O povo acorre porque é também esta a única via de ligar
o homem à pedra e à terra, lhe minorar o sofrimento,
no elo comum dos mistérios do divino,
do absoluto e do Universo.
Momento de devoção, belo! Abençoado!...
Hora alta! Etérea e solene!... – Um cântico
comovente e devoto, volta a ecoar por todo o templo,
invade os corações avidos do sagrado
que os reconforte e os retempere
das longas jornadas da semana,
dos dias que vão de sol a sol,
do acordar cedinho e do regressar
ao lusco-lusco-fusco, quase à noitinha.
comovente e devoto, volta a ecoar por todo o templo,
invade os corações avidos do sagrado
que os reconforte e os retempere
das longas jornadas da semana,
dos dias que vão de sol a sol,
do acordar cedinho e do regressar
ao lusco-lusco-fusco, quase à noitinha.
Oh, sim, é domingo...
- Mas que domingo mais solitário e triste!...
Quem me dera viver este dia no coração
da minha aldeia - Chegar ao fim do dia
e, tal como em criança e à luz da candeia,
sentar-me à mesa da cozinha,
ali junto à lareira, comendo o caldo verde
e as batatas, regadas com o azeite
das nossas oliveiras, um pouco de fumeiro,
mais das vezes quase sem peguilho
- A ementa era apetitosa mas não variava muito:
Raramente se ia à mercearia: era tudo colhido da horta;
havia dois fornos comunitários, a minha mãe amassava
a farinha do nosso trigo ou centeio
que os moleiros moíam nos moinhos
da ribeira ou do Côa e depois levava
o pão a cozer no tabuleiro
Uma sardinha, coisa ali rara,
por vezes, não era inteira, mas dividida.
O pior era a fumarada da fogueira: pois havia
que aquecer a água da beberagem para o "vivo"
E o caldeiro ficava sobre a lareira e desviava
o fumo da chaminé. - A vida da lavoura,
dá tantos trabalhos, Deus meu!... E para nada...
Vida dura!... Nunca tive um brinquedo
de feira, senão aqueles que eu próprio construía.
Os meus quatro irmãos, a mesma sina!
Mesmo assim... que saudades!...
Quão longe estou eu desses lugares!
Quão distantes me parecem agora esses tempos?!..
Que todavia não me saem da retina dos meus olhos..
Tão perto os sinto do meu coração! - Oh ânsia!...
Oh impossibilidade de transformar
os meus pensamentos num voo de pássaro,
capaz de me fazer vencer todas as barreiras e mares!
Para que num único voo fosse capaz de lá chegar
- Mas não posso!...
O que os meus olhos, em verdade vêem,
é um outro mundo... Outros horizontes, outros espaços!...
Uma vasta superfície azul ondulada e deserta... - Tudo a unir-se
no mesmo azul esbranquiçado num imenso círculo
a perder-se-me de vista....Olhe para onde eu olhar,
só vejo mar e o céu ! ... Seja para que ponte for que me voltar...
A mesma solidão infinda... O mesmo azul infindo do mar!...
Que cenário este meu Meu Deus!... O pior é à noite...
Depois do sol se pôr... Escurece e a tristeza é ainda maior.
E, então se chove ou se houver alguma trovada!...
Oh, nessas trevas soltas o que sou eu, afinal?!..Não sou nada!...
Não sou nada!..Não tenho palavras...Não tenho palavras..
Quando não há luar fica tudo escuro como breu.
É o negro vazio... É a noite assolada!....A noite no mar!...
Metido neste casco de árvore..Por vezes sinto que não existo..
Mas a vida!... A vida!... Não há milagre maior que a vida!
Não me resigno!...Não me dou por vencido!
Sozinho!... Lá vou sendo arrastado... Às vezes à vela ou a remar.
Não me rendo e não desisto de lutar... Não me rendo!
Oh, para onde me arrastarão estas águas?!.. A que ponto?!..
Até quando esta incerteza!...Até quando?!..
Ó inclemente oceano! Ó mares largos! Ó impiedosos céus!
Onde está o altivo campanário da antiga igreja, o adro, o negrilho?!.
Oh que saudades dos ondulantes montes de centeio,
dos rolheiros nas eiras e da azáfama das ceifas e das malhas!
O brilho das espigas de milho e o dourado mar
das lindas searas de centeio e trigo.
A ribeira com o marulhar dos choupos, o cantar dos pardais
nas belas manhãs e tarde primaveris, de estio ou outonais.
As suaves noites de Verão de luar prateado,
banhando o planalto, ladeiras e montes e o Vale dos Areais!...
Só o mar! O mar a bramar! A bramar!!..
O mar!...O mar!!... E eu perdido!..
Eu sozinho! O Céu e o Mar!..
Ó aldeia querida que me viu nascer!
Ó horizontes dos longos e verdes dias triunfais!...
Quanto vos recordo!... Quão longe da minha vista estais!...
Quanta tristeza vai no meu coração atribulado!...
Em que ermo ponto, deste imenso horizonte, agora estais?!.
Oh, quanto, em vão, eu agora vos evoco!
Oh, quanto,em vão, agora me lembrais!...
Jorge Trabulo Marques
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