Escura é a noite, escuros os caminhos dos mares
e dos céus que se me abrem em todas as direções....E também
escuros serão certamente os caminhos que me conduzirão a
Deus... “O tormento no meu coração me dá alegria; que a esperança
enganosa fique longe de mim”
Si dolce è’l tormento
Versos de Claudio Monteverdi
Si dolce è’l tormento
Ch’in seno mi sta,
Ch’io vivo contento
Per cruda beltà.
Nel ciel di bellezza
S’accreschi fierezza
Et manchi pietà:
Che sempre qual scoglio
All’onda d’orgoglio
Mia fede sarà.
Excerto de Monteverdi - Si Dolce e'l Tormento | Magnificat
"Tão doce é o tormento que dentro de mim está. que eu vivo contente por cruel beleza; No Céu de beleza cresce a frieza e falta piedade"
Escura é a noite, escuros os caminhos dos mares e dos céus
que
se me abrem em todas as direcções....E também escuros
serão
certamente os caminhos que me conduzirão a Deus...
Vou
indo à deriva, sereno e grave, sem precisar de ninguém
Pois,
mesmo que precisasse, ninguém me estenderia a mão!
Atento
e indiferente - Vestido com as vestes da nocturna solidão.
Absorto
com a crua verdade transfigurada do assombro!
As
trevas adensam-se na atmosfera e, por tão habituais,
quase
já não me impressionam, não me comovem.
Fazem
o seu percurso. Eu vou no seu seio mas não sei bem qual é o meu...
Sim,
as sombras estão por todo o lado e também invadem o meu coração!
-
Vagueio sem destino com a coragem e o medo que ainda não sei vencer.
Não
recuo a nada....Porque, enquanto tiver algum medo é sinal de que vivo....
Vou
indo com o soooar do mar! Com o mar que soa! Com o mar que brâaame!..
Vou
indo, derivando com o mar que voa!... Com o mar a bramaar!
Sou
o cavaleiro andante sonhando acordado!... Sonhando cavalgando
este
vasto largo, neste imenso mar!... Sonhando e cavalgando o mar..
porque,
ao sonho, não há limites nem barreiras
e
a noite acompanha-me nos meus sonhos,
os
astros estão ocultos, longínquos e escondidos,
o
silêncio foi submerso pelo rugido do vento e do mar,
só
a roupagens da noite, as tenho por únicas companheiras!..
Mas,
ó piedade impiedosa dos céus!..
Nenhum
sinal de vida! Ninguém...Vivalma!
Só
as vagas.... e atrás das vagas, outras vagas ainda!
O
vento soluça e geme. Perpassa-me pelos ouvidos
como
um fino acorde - Estou envolto nele.
Sonâmbulo
abandono o meu, estranha vida!...
Onde
irei numa noite de breu assim?!.. A que distância
haverá
um porto de abrigo?!... As nuvens correm
sobre
a minha cabeça, galopam enroladas e escuras!..
Quase
me esmagam e sufocam!.. Em que ponto
do
mar ou do céu poderei pousar o meu olhar?!..
Bravio
deserto! espectral cenário! - Estranha e cruel beleza!
Quem
se compadece de mim?!... Tão prolongado já vai
o
sofrimento, a angústia que me aplaca e não se esvai,
que,
de tanto penar neste deserto varrido e sombrio
e,
dos céus cerrados, vir somente a indiferença e a frieza,
sim,
tamanha já é a minha dor, a amargura intensa que não se me apaga,
que,
esta contínua incerteza, este permanente amargo sofrer,
este
resignado sentimento que me fustiga e perturba,
se
transforma, simultaneamente, não só em persistente dor
mas
também num misto de sereno e doce contentamento!
Como
se eu fosse - mesmo diluído e errante como as sombras-
O
Deus de mim próprio e das escuras névoas, o meu próprio Criador!
Há um marulho que
tumultua, se levanta e uiva.
Soergo-me ajoelhado,
tímido levanto o húmido oleado
com que cubro a piroga, envergando
ainda a capa com que durmo, debruço-me sobre a frágil borda,
espreito por uma nesga o
que vai lá fora,
olho a noite de olhar
turvo e arregalado
para descortinar o que vai
ao largo....
É o fuzilar de relâmpagos
e mais relâmpagos
a rasgar negridão. Fico
preocupado…
Além dos sinistros raios a
incendiar o mar, além de mim,
nada mais ouço que o
uivar do vento e, nos confins, agora o trovão!
Nada mais enxergo que
manchas difusas!
Vultos disformes! …Vultos
montanhosos!
E, atrás desses vultos, alterosos
e escuros, outros maiores se enrolam!
Ameaças fugidias sobre a
imensa e negra vastidão!....
Em vão perscruto o denso
horizonte,
a ondulante massa
que meus olhos cega e turva...
Em vão, neste longo
tormento, nem a lua
nem as estrelas, dão
sinais da sua existência.
Só farrapos de
penumbra!... Espessas névoas
que pairam à
superfície lívida e líquida!
Novelos fantasmagóricos,
baixos e fugidios
que se movem como se
fossem navios fantasmas!..
Nenhum raio de luz vem do
alto!.. E, no entanto,
as águas enrolam-se e refletem
um brilho baço!
Não há uma aberta, um assomo de
claridade!..
Por isso, sinto-me agora
mais triste, sozinho e abandonado!
Imerso numa paz podre e
angustiante, tendo por cenário,
um quadro que tem
tanto de sombrio, como de horrível e belo!
Traz nas pastosas vagas
que se revolvem e quebram ao meu lado,
ameaça iminente de mais
umas longas e atribuladas horas de vigília!
De sono perdido, enfrentando
as sucessivas investidas!
Que nunca se sabe donde
vêm e donde partem!
O que eu sei é que o
ambiente do mar
e da noite se altera, as
vagas encrespam-se!
Quando é de dia, vê-se
donde vêm as ameaças!
Porém, quando à escura noite, sobrevém o tornado
ou a tempestade, tudo é
medonho!...- Não há palavras!..
Vento e vagas! negros estão os mares e os céus!
Dentro de mim, onde vogo, em redor ao largo e ao alto
reina a solidão e o peso da noite mais funda! - Estou
só!
Angustiado, face ao abandono do mundo e de Deus.
Estômago a dar horas, encolhido e vazio como um fole!
Em vão aperto o cinto, martirizado por fome
atroz!
Sequioso de água potável - Corroído e atormentado
pela sede - No equador o sol é a pino! Agora que
eu faço?!..
Água potável, só a das chuvas ou recurso à do salgado
mar!
Oh, sim!..Dorido das chagas, as feridas da muita
humidade,
das pústulas que me cobrem as partes! Vogando
enfim
por caminhos ínvios que eu não sei - Silente e
prostrado,
taciturno no fundo de mísero esquife que flutua-
Deste caixão
vergastado vogando na solidão de escuras águas de
espuma!
Solitário e silencioso, nem um murmúrio balbucio mas
sofro.
E choro por vezes as lágrimas sofridas da minha cruel
sorte.
Errando na confusa superfície, derivando à toa e sem
norte!
Qual vida sem rumo ou névoa que se esbate, esvai
desfaz ou apaga.
Qual moribundo! Qual Cristo que espia descido da cruz
do calvário!
Não desesperado, não rendido mas já mais inseguro e
menos calmo,
sem que alguém me responda, inquieto, pergunto ao meu
coração:
- Serei apenas a onda fugidia que se ergue franjada e
se desfaz?!..
O espectro diluído e esfumado, a alma errante de
outro mundo?!..
Afinal, o que serei eu à flor deste mar negro fugidio
e encapelado?!...
Serei o homem só no vasto oceano revolto vogando
perdido
à espera de cair no tumultuoso negrume da
mais horrível tumba,
envolvido pelos dedos crespos do mais insondável poço
ou abismo?!..
Ó negros e opacos céus, ó negros e corridos mares!...
- Longe já vão essas noites nas densas trevas envolto
pelo bafo permanente da aragem viscosa da morte,
as vergastadas ou os salpicos violentos da
salgada espuma!
Todavia, quão perto os tenho ainda na minha memória!
Quão posso agradecer a Deus e aos Céus, a minha sorte!
Jorge Trabulo Marques
Jorge Trabulo Marques
(...) Devem ser oito horas... É noite do 30º dia. Choveu, como
previra, no fim de tarde. Por acaso apenas foram os reflexos de uma trovoada
que deve ter ocorrido, lá para longe, lá para o sul... Mas as vagas estão
demasiado fortes!... O que veio realmente dar um certo desequilíbrio à canoa.
Há formações de nuvens negras a norte, noroeste...Vejo que algumas estão
realmente a deitar chuva.Noutras bandas....vê-se a escuridão. E, para o sul,
não sei se ainda terão chuva....Espero...Só peço a Deus que a noite não seja
chuvosa.....Porque é muito chato...
Não comi nada...Quer dizer, limitei-me a comer as barbatanas do tubarão que
tenho aí. Tentei pescar mas não consegui absolutamente nada!... Hoje, digamos,
é um jejum limitado a água.... Não pude arranjar mais nada, visto ter estado
ocupado quase todo o dia com o remo improvisado para dar a direcção à
canoa..." Excertos do meu diário de bordo - registado para
um pequeno gravador que preservei no interior de um antigo caixote do lixo
- O meu baú - imagem ao lado
A terminar ocorre lembrar-me de uns poemas de Henri Michaux - Sim, houve noites e dias, em que cheguei a desejar
o fim do meu calvário:
"Náusea ou é a Morte que se Aproxima"
Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.
Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.
Eu, por mim, não posso mais.
Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra
vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas
viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por
cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que
antes de
saltar a barreira já vos grita o seu
nome,
Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos
vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o,
peço-vos.
Henri Michaux - In Equador
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