O MUNDO DESUMANIZA- SE
E JÁ PERDEU MUITO DO SEU SENTIDO INICIAL - MAS HOUVE QUEM EM SUA VIDA NÃO SE
RESIGNASSE A ESSA FATALIDADE E PAGASSE CARA A SUA OUSADIA COM 5 ANOS DE PRISÃO - Aclav Havel foi um desses heróicos resistentes que não
se compadeceu com degenerescência do ser humano reduzido à "identificação
cega com a corrente irracional do “mundo da aparência”
"O ser humano apropriou-se do mundo de uma maneira que, de
facto, o perdeu; submeteu-se de uma tal modo que acabou por destruí-lo (tal
como o cientista que mata um ser vivo para que esteja quieto debaixo do
microscópio)!
Hoje, ao reler o Cartas a Olga, escritas na clausura de uma prisão, tão impressionado fiquei, com uma das suas reflexões que não resisti a transcrever algumas passagens e a recordar a memória de Aclav Havel, o
ex-presidente checo e herói da luta que pôs fim à Guerra Fria, morreu na madrugada, de 18 de Dezembro, aos 75 anos,
durante o sono, na sua casa de fim-de-semana no norte do seu país
O mistério dos caminhos da vida são um permanente desafio que urge decifrar e descobrir |
Uma vez que
a Lanterna de Deus me serviu de amparo e de farol na mais sinistra solidão
tempestuosa dos mares, espero que um dia - mesmo que seja no último suspiro da
minha vida - me privilegie com o dom da sublimidade
UMA FIGURA EXEMPLAR
Escritor, intelectual e dramaturgo checo. Foi o último presidente da Checoslováquia e o primeiro presidente da República Checa. - Firme defensor da resistência não-violenta (tendo passado cinco anos preso por suas convicções), tornou-se um ícone da Revolução de Veludo em seu país, em 1989. Em 29 de dezembro de 1989, na qualidade de chefe do Fórum Cívico, elegeu-se presidente da Checoslováquia pelo voto unânime da Assembleia Federal – O primeiro Chefe de Estado, no seu país, após a queda do muro de Berlim.
“As características mais peculiares dos registos de Havel são o calor humano, a descrição bem concreta e crua das suas condições físicas e de ânimo e um inabalável sentido existencial de responsabilidade histórica, referido tanto a si e à sua obra quanto a seu tempo, à sua sociedade e a um sentido de cultura fundado sobre a construção solidária de uma liberdade contingente, de que é ele mesmo um dos mais sublimes propositares e fundadores. Estas Cartas representam, nesse sentido, o mais autêntico resgate daquele renascimento tcheco pioneiro, aquele grito rebelde jamais abafado, que proclamava a vontade irredutível da autonomia, na utopia plural, aberta e relativista de Praga. cartas a olga -
Querida Olga: 6 de Março de 1982
"Ao ver há dias na
televisão uma reportagem de uma vacaria, tomei consciência de que a vaca já não
é um animal. É uma máquina que tem o seu input (forragem) e o seu output
(leite), o seu plano de produção e o seu operador mecânico, cujo objetivo é o
mesmo que o da nossa economia politica global; diminuir o input e aumentar o
output. A vaca adquire assim uma verdadeira eficiência , mas o custo é que
deixa de ser vaca – processo semelhante ao que acontece com a Boémia
Setentrional , que é para nós uma parte importante do combustível (se isso se pode chamar à terra com uma
mistura de lignite) ao preço de deixar de ser uma parte integrante da nossa
terra-mãe (qualquer coisa a meio caminho
entre a luva e um vazadouro de lixo). Estas “miudezas”, penso eu, ilustram de
uma forma óbvia o que se passou com esta civilização e a razão pela qual (se não acontecer “algo”, porque todos
esperemos, sem imaginar o que será), mais tarde ou mais cedo ela acabará por
desaparecer.
O ser humano apropriou-se do mundo de uma maneira que, de facto, o
perdeu; submeteu-se de uma tal modo que acabou por destruí-lo (tal como o
cientista que mata um ser vivo para que esteja quieto debaixo do microscópio).
Creio que são evidentes as razões
profundas desta trágica ocorrência. A crise da experiência do horizonte
absoluto que nasce da estrutura espiritual da nossa civilização e por ela é constantemente aprofundada, conduz à perda
do sentido da integridade do ser, da independência de tudo quanto existe, da
sua singularidade.
Os fenómenos do mundo perdem a sua plenitude
significativa e misteriosa ( não
misteriosos nem significativos). Tudo se converte em “mero facto” e o que ainda é mais importante : a crise da experiência do
horizonte absoluto leva normalmente à crise da responsabilidade existencial do
ser humano perante o mundo e pelo mundo – o que significa também perante si
próprio e perante si próprio. E onde não existe tal responsabilidade - como fundamento da relação do ser humano
com o seu meio ambiente – desaparece comprovadamente a identidade como lugar imutável num mundo em que lhe foi
dado por esta relação.
Assim se fecha o circulo que poderemos resumir aforisticamente: pelo
facto do ser humano ter tirado à vaca o
último resto da sua animalidade, matou também em si a sua humanidade e
tornou-se semelhante a um animal. E o que é importante : a vida em rebanho da
sociedade de consumo, cuja expressão mais vistosa são os modernos bairros de
habitação e cujo instrumento mais ostensivo é a televisão: a degenerescência do
ser humano reduzido às suas funções isoladas, tornadas anónimas (produtor,
consumidor, doente, eleitor, etc); a sua total impotência perante as macroestruturas sociais anónimas; a sua adaptação complexa à norma
“moral” generalizada, a resignação perante tudo que implica uma superação um
horizonte da vida em rebanho – tudo isso são meios que conduzem a identidade
humana a uma crise cada vez mais profunda e alargada.
Como é que crise se faz
sentir? De mil e uma maneiras: o ser humano enredado numa estrutura social em
movimento autónomo, transforma-se numa
molécula com uma marca assimilada. Ou seja, perde o rosto, a vontade e o
discurso próprios e torna-se, em certa
medida, numa frase materializada e acaba por sofrer um processo de
idenfiticação, que de novo representa uma desistência de si mesmo. Despojado do horizonte histórico,
do qual e enquanto sujeito se poderia articular criativamente, acaba por cair na
“atemporalidade”; despojado do “horizonte concreto” do lar (quando vivemos num
bairro habitacional, é indiferente a sua localização; os bairros de habitação
são iguais em toda a parte), o ser
humano encontra-se numa espécie de “não espaço”
anónimo (o caso do espaço e do tempo existenciais e o caso da identidade
são vasos comunicantes ).
A identificação cega com a corrente irracional do
“mundo da aparência” e a resignação
perante uma visão própria do mundo e também em relação à responsabilidade e por ele confundem e desestabilizam o “eu”
humano. Toda a articulação do que foi ou que deve ser com aquilo que é, já o localizou, de uma vez
por todas, fora de si próprio e fora da área que lhe compete gerir. O que
implica que qualquer articulação daquilo que é em determinado momento com o que
é noutro momento qualquer foi certamente destruída. Deste modo, o ser humano –
na medida em que deixa de responder por
si próprio e pela sua vida, perde necessariamente, a consciência de si próprio
e a dignidade de personalidade
responsável e converte-se num pedaço de barro que indica a sua origem
pantanosa
18/12/2011 – PÚBLICO - “Há muito afastado da vida pública por causa da sua doença, Havel foi um
escritor de intervenção contra o regime, o artesão da “Revolução de Veludo”
anticomunista de 1989 e o primeiro chefe do Estado democraticamente eleito após
quatro décadas de repressão, entre 1989 e 2003.
Foi, aliás,
durante a sua presidência, em 1993, que a Checoslováquia se dividiu
pacificamente entre a República Checa e a Eslováquia. Vaclav Havel foi o
responsável pela transição do anterior sistema soviético para um regime
democrático e uma economia de mercado – um processo acidentado, mas pelo qual
recolheu elogios, galardões e homenagens no seu país e no mundo.
Nascido em Praga a
5 de Outubro de 1936, Vaclav Havel viu as posses da sua família abastada serem
confiscadas durante as nacionalizações comunistas de 1948. Apesar de ficar inesperadamente
pobre, a família ainda era considerada "burguesa" pelo regime, pelo
que não foi permitido a Vaclav prosseguir os estudos secundários. Havel
matriculou-se na escola nocturna e terminou a trabalhar no teatro.
Tímido e estudioso
– e também um jovem do seu tempo, que tinha entre os seus preferidos o músico
norte-americano Frank Zappa – Havel tornou-se um escritor e dramaturgo. A sua
intervenção política começou logo após a invasão soviética de 1968 que pôs fim
à chamada Primavera de Praga – um processo de reformas encetado por Alexander
Dubcek e outros líderes comunistas da então Checoslováquia. O seu método foi
sempre o da literatura: Vaclav Havel escreveu uma série de peças, ensaios e
análises sobre o comunismo, que imediatamente foram proibidas por Moscovo
.
O mês de Janeiro
de 1977 marca o arranque do seu activismo político, com a assinatura do
manifesto pelos direitos humanos “Capítulo 77”. Um ano mais tarde, o seu ensaio
“O Poder e os Sem Poder”, que consagrou o seu estatuto de dissidente político,
abria com uma citação do Manifesto Comunista: “Há um espectro a assombrar a
Europa de Leste; o espectro daquilo que no Ocidental
A sua aberta
oposição ao regime custou-lhe vários anos passados nas cadeias comunistas.
“Cartas para Olga”, um livro reunindo as cartas que escreveu à sua mulher da
prisão, tornou-se uma das suas obras mais conhecidas (Olga Havlova morreu de
cancro em 1996).
Foi durante as
manifestações de Praga em Agosto de 1988 – durante o 20º aniversário do Pacto
de Varsóvia – que o seu estatuto político ficou claro. Milhares de jovens
saíram para a rua, gritando o seu nome e do seu herói, Tomas Garrigue Masaryk,
o primeiro Presidente da Checoslováquia depois da fundação do país em 1918.
A onda de
protestos populares em seu nome levou-o mais uma vez à prisão. Em Janeiro de
1989, com o regime comunista já em colapso, o seu julgamento atraiu as atenções
internacionais, e a pressão política foi de tal maneira intensa que as
autoridades aceitaram a sua libertação.
Uma semana após a
queda do muro de Berlim, em Novembro de 1989, Vaclav Havel e outros famosos
opositores checoslovacos criavam um movimento político. As manifestações na rua
prosseguiram, reclamando a mudança de regime.
A 29 de Dezembro,
o Parlamento da Checoslováquia (ainda comunista) elegia Vaclav Havel para a
Presidência do país. Na sua mensagem de Ano Novo à população, transmitida pela
televisão, o escritor resumia numa metáfora os efeitos de 40 anos de repressão
comunista: “Éramos um povo soberano e talentoso, e o regime transformou-nos em
pequenos parafusos de uma máquina monstruosa, podre e barulhenta”.
Havel liderou,
então, o movimento de transição para um novo regime aberto e democrático, nunca
se abstendo de denunciar as deficiências da sociedade checoslovaca, fiel à sua
máxima “O que o coração pensa, a língua diz”.
Mas os desafios
pós-revolucionários foram tremendos, e pouco tempo depois Vaclav Havel
apresentou a demissão, classificando como um “falhanço pessoal” o irreversível
processo de desagregação da federação checoslovaca.
O eleitorado não
lhe deu razão, e apoiou-o para um novo mandato como Presidente da recém-criada
República Checa, um cargo que ocupou até 2003. – Prossegue em - Inspirador da
Revolução de Veludo desaparece aos 75 anos. Morreu ...
Quando Soares ofereceu um
carro a Václav Havelm- Refere o DN – que, Mário Soares, já presidente da República,
ofereceu a Václav Havel um carro para que não usasse as limusinas de
fabrico soviético, e José Pedro Aguiar-Branco e Álvaro Beleza, ainda sem
cabelos brancos, a manifestarem-se em Praga pela democracia em dezembro de
1989.
Está
tudo isto e um pouco mais testemunhado em fotografias e filmes na exposição, em
Lisboa, na Fundação Mário Soares, a amizade entre o histórico líder português e
o falecido dissidente checoslovaco que aproveitou a boleia da queda do Muro de
Berlim para derrubar o comunismo no seu país.
Antes
da inauguração, conversei com Michael Zantovsky, autor da mais reputada
biografia de Havel e sobretudo seu amigo e durante algum tempo porta-voz, até o
dramaturgo, já presidente checoslovaco, o ter nomeado para embaixador nos
Estados Unidos. Falou-me dos jovens portugueses que se juntaram em 1989 aos
manifestantes pró-democracia e de como Soares foi o primeiro chefe de Estado
europeu, indo mesmo a Praga, a apoiar a Revolução de Veludo que fez de Havel o
presidente pós-comunista da Checoslováquia e depois de 1993 da República Checa.
Há
muito em comum entre Soares e Havel, a começar logo pela passagem pela prisão,
perseguidos um por uma ditadura fascista outro por uma comunista. E se o português
também conheceu o exílio, o checo teve de resistir muito a deixar o país, pois
o regime comunista pressionava-o a partir para se livrar de uma voz incómoda.
Também partilhavam as origens burguesas e o perfil intelectual, algo que, por
outro lado, distinguia muito o dramaturgo checo do polaco Lech Walesa, o
metalúrgico que foi a outra grande figura da revolta da Europa de Leste contra
o Kremlin.-Excerto de https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/leonidio-paulo-ferreira/interior/quando-soares-ofereceu-um-carro-a-vaclav-havel-5459289.html
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