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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Vila Nova Foz Côa - 705 anos sobre o segundo foral 24-07-1314 - 24-07-2019 - Mas ignorados - A cidade situada na "província de sonho, que não se estuda nos compêndios" –Dizia Amândio César - O singelo tributo a um distinto homem das letras e grande amigo do nosso concelho, onde forjou muita da sua sensibilidade.


Amândio César (grande homem de letras, que em sua vida tão vincada afeição mostrara por estas terras, das quais tanto se orgulhava de ter  algumas raízes familiares e com quem tive o grato prazer de conviver), disse que "Vila Nova de Foz Côa possuía três forais, dos quais dois antigos e o terceiro novo, datado depois da carta régia de 22 de Novembro de 1497, que constitui a reforma manuelina, baliza da distinção entre o primeiro  e o segundo"

 Por Jorge Trabulo Marques - Jornalista

705 ANOS - UMA EFEMÉRIDE  IGNORADA  - TODAVIA  FAZ PARTE DA HISTÓRIA DE FOZ CÔA



Salvo melhor informação, não me apercebi que a data tivesse feito parte de algum agendamento especial   na capital de dois Patrimómioa da Humanidade - Mas faz parte da vida do nosso municipio. 

Amândio César, o qual, conquanto aqui  não tivesse nascido, o recebera, ainda no colo de sua mãe. 

 Amândio César: "Devo confessá-lo em voz alta: eu não sou de Fozcoa. Mas o sangue me prende lá, lá tem raízes o meu corpo e a minha alma. Não viesse de lá transferido o meu Pai, após qualquer acontecimento político, e eu por certo gostaria da terra por lá ler nascido e nada mais. Mas, ao contrário daqueles filhos de portugueses que nascidos no Brasil chamam galegos aos seus pro· genitores, foi por não ter nascido em Fozcoa que não gostei deIa: amei-a e amo-a - " - Palavas proferidas na referida conferência, na Casa Regional da Beira Douro, 

em 24 de Abril de 1954

A FOZ CÔA, FORAM-LHE ATRIBUIDOS TRÊS FORAIS RÉGIOS 


Qual dos três o mais importante? - Naturalmente que todos eles foram relevantes e contribuíram para tornar Foz Côa, na cidade que é hoje - Amândio César, poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário e jornalista, com raízes familiares a Foz Côa, da qual nutria profundos laços afetivos, chegou a dissertar sobre esta questão, na conferência que proferiu, em 24 de Abril de 1954, na Casa regional da Beira Douro, sobre Vila Nova de Foz Côa, da qual aqui vamos transcrever alguns excertos

 Responde,  Amândio César:

 "No passado - os forais - que, como queria Alfredo Pimenta e aqui me parece aplicar-se bem, nem sempre é criador do regime municipal. é muitas vezes sancionador de situações pré-existentes» e, deste modo, se poderiam definir como «diplomas que contêm leis particulares por que os concelhos se regiam, e que visavam principalmente matéria tributária, ainda que às vezes sob a aparência de matéria criminal, e os privilégios da população». Que assim deve ter sido me parece, repilo, pois que D. Diniz concede a Fozcoa o seu primeiro foral em Portalegre, aos 21 de Maio de 1299 e o segundo, em Lisboa, aos 24 de Julho de 1314. Apesar disso só D. João 1 a elevará à categoria do Vila. Isso explica que, quer no Pelourinho, quer na Igreja, como já referi, se veja o emblema do primeiro soberano da segunda dinastia: a Flor de Liz. 

O terceiro foral foi outorgado por D. Manuel l e datado de Lisboa aos 16 de Junho de 1514. Pode, pois, dizer-se, regularmente, que D. Diniz foi o fundador da futura Vila, remontando a história das liberdades concelhias, a muito longe: possuindo Vila Nova de Fozcoa três forais, dos quais dois antigos e o terceiro novo, datado depois da Carta Régia de 22 de Novembro de 1497, que constitue a reforma manuelina, baliza da distinção entre os primeiros e o segundo
"
 RECORDAR FOZ CÔA ATRAVÉS DA MEMÓRIA DE AMÂNDIO CÉSAR

"Meus amigos: estamos numa província de sonho - a província da Beira-Douro que não se estuda nos compêndios, mas se tem e se conserva no coração; não é pecado (ao menos não será pecado grave ... ) falar-vos como se sonhasse em voz alta de uma terra que é possível não seja da forma que meus olhos a viram e minha curiosidade a estudou: Vila Nova de Foz Côa"  -  Amândio César - O poeta e escritor que amava profundamente Vila Nova de Foz Côa.


 Amândio César: "Devo confessá-lo em voz alia: eu não sou de Fozcoa. Mas o sangue me prende lá, lá tem raízes o meu corpo e a minha alma. Não viesse de lá transferido o meu Pai, após qualquer acontecimento político, e eu por certo gostaria da terra por lá ler nascido e nada mais. Mas, ao contrário daqueles filhos de portugueses que nascidos no Brasil chamam galegos aos seus pro· genitores, foi por não ter nascido em Fozcoa que não gostei deIa: amei-a e amo-a - " - Palavas proferidas na referida conferência, na Casa Regional da Beira Douro, 
em 24 de Abril de 1954


 AMÂNDIO CÉSAR - Um César no domínio do léxico fozcoense" - escreveu Manuel Daniel


Manuel Daniel, advogado e distinta figura das letras e do municipalismo, grande admirador da vida e obra de Amândio César, tendo-lhe dedicado um extenso artigo no nº 3 da Revista CEPIHS, do Centro de Estudos de Promoção e Investigação Histórica e Social - de Trás-os-Montes, lançada  por ocasião da cerimónia de homenagem  à poeta Drª Maria Assunção Carqueja, esposa do Prof. Adriano Vasco Rodrigues, que posteriormente viria a falecer -  

Alguns excertos desse interessante artigo, foram também editados no semanário OFOZCOENSE, em 1 de Outubro de 2013, com algumas  passagens da citada conferência, que havia sido integralmente publicada numa separata do Boletim da Casa Regional do Douro, de cuja fonte também nos servimos...Referindo-se aos laços de Amândio César, a Vila Nova de Foz Côa, Manuel Daniel, começou por lembrar  o homem o "Fozcoense nascido no Minho"



"Nasceu no coração  do Minho, abrindo pela primeira vez os olhos para a paisagem edílica da Serra da Peneda, em Arcos de Valdevez. Para esta bela cidade tinha sido transferido o progenitor  que, todavia, mantinha os seus interesses na região do Alto Douro, esse pedaço de  oiro  que se integra  "no reino maravilhoso" que outro escritor e poeta celebrizou. Vila Nova de Foz Côa, uma assombrosa varanda sobre os montes reboredos e o peredo dito dos castelhanos, chamou-o ainda bébé de fralda, para ser primoroso entendor  da indissocracia fozcoense, com o vigor de quem  lhe descobrirá a alma para depois a fazer resplandecer, através da sua obra, como se aquela tivesse uma riqueza tão grande e tão guardada como sucede com o famoso pálio de Cidadelhe, concelho de Pinhel."



Amândio César, nacido em Arcos de Valdevez, em 12 de Julho de 1921, Amândio César,  faleceu  em 1987, aos 67 anos, em Lisboa, onde residia - Amava, apaixonadamente, estas terras,  «a vilazinha de sonho, aquela que eu descobri com os olhos virgens da minha longínqua infância: que eu vivi na gárrula juventude que morreu há muito ; que me doeu no corpo e na alma de uma adolescência que não mais se repetirá .

 Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi professor do ensino técnico. Um dos elementos do grupo Poesia Nova e o fundador da revista Quatro Ventos (Braga, 1954-1957). Como ensaísta e crítico literário, dedicou parte da sua atividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa - Autor de uma vasta obra - poesia, contos, ensaio, antologia, geografia literária, reportagem.

Escreveu dezenas de volumes, em prosa e verso, destacando-se “Parágrafos de Literatura Ultramarina” e “Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina”, onde compendiou dezenas de autores que ainda hoje pontificam entre os melhores da cultura portuguesa.
Em 1975, em pleno Verão quente, teve de exilar-se em Vigo, Madrid e, mais tarde, no Brasil, onde viveu dificuldades financeiras e a ausência da Família e dos Amigos. No regresso publicou “País em Fuga – Poemas de um tempo que foi”, onde reflecte essa angústia e ingratidão nacional. Gastou a vida a cantar Portugal e os Portugueses que tão desprezivelmente o trataram.
Faleceu em Lisboa, em 10 de Agosto de 1987, com 67 anos de vida.
 http://nonas-nonas.blogspot.com/2007/08/amndio-csar-20-anos-de-saudade.html


No dizer de Jorge de Sena, «se a sua poesia se integra, apesar de uma certa versatilidade, num lirismo tradicional e tradicionalista, os seus contos aproximam-no do neo-realismo literário na forma de tratar a terra duriense».
Como ensaísta e crítico literário, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, nomeadamente a angolana. 
Faleceu a 21Ago1987, na sua residência em Lisboa.
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_AmandioCesar_Angola1961.htm

Deu-me a honra e o prazer de me receber em sua casa, para uma breve entrevista à Rádio Comercial, embora, naquela altura, já se encontrasse bastante doente, tendo-o conhecido, pela primeira vez, em S. Tomé, aquando da visita do Almirante Américo Tomás, na mesma semana em que faleceria, Oliveira Salazar  

- Por sinal, íamos no mesmo carro, a caminho da então Vila das Neves, quando a rádio deu a noticia - Foi também nesta ilha que tomei conhecimento, da sua extensa obra, através da  "Presença do Arquipélago  de S. Tomé e Príncipe na Moderna Cultura Portuguesa, a primeira antologia, até então publicada, que levou ao seu autor um ano  na sua elaboração, tendo sido aprsesentada no ano anterior às comemorações dos 500 anos da descoberta deste arquipélago. - 

Foi nessa ocasião que eu soube dos seus profundos laços a Foz Côa: extremamente expansivo e comunicativo, não hesitando em usar o nosso vernáculo foscoense, do qual recebera até o timbre sonoro do seu  linguarejar - Quem ouvisse falar, e conhecesse bem Foz Cõa, não duvidava que ele era um dos nossos conterrâneos. Embora não tendo cá nascido, porém, a sua vivência desde tenra idade, marcá-lo-ia para toda a vida.

 A FRONTALIDADE DE UM GRANDE HOMEM DE LETRAS - PROSCRITO PÓS 25 DE ABRIL    - Diz Manuel Daniel 

"Como ensaísta e crítico literário, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, nomeadamente a angolana, sempre de um ponto de vista "colonial" ou "ultramarino" mas sem discriminar os que politicamente lhe não eram pares" - Todavia, descrimimram-no a ele.

"Vila Nova de Foz Côa é o meu caleidoscópio sentimental que desde menino não me canso de ver"

"Nascido por acaso, este português já ilustre do Alto Minho, nas pitorescas margens do vez, lá para os arcos que têm estranhas semelhanças com a nossa atlântica Ilha Verde, julga-se dúrio-beirão  pelo sangue e pelo coração . É que os seus extremosos pais radicaram na terra adusta de Foz Côa" - Palavras do Engº Artur Castilho, na apresentação do conferente, em 24 de Abril  de 1954

 Mas passemos a palavra a Amândio César - citando alguns dos calorosos passos da inesquecível conferência
:
 (...) "Meus amigos: estamos numa província de sonho - a província da Beira-Douro que não se estuda nos compêndios, mas se tem e se conserva no coração; não é pecado (ao menos não será pecado grave ... ) falar-vos como se sonhasse em voz alta de uma terra que é possível não seja da forma que meus olhos a viram e minha curiosidade a estudou: Vila Nova de Fozcoa. 

Assim sendo, na casa de uma província de sonho eu falarei de uma vilazinha de sonho também, aquela que eu descobri com os olhos virgens da minha longínqua infância: que eu vivi na gárrula juventude que morreu há .muito ; que me doeu no corpo e na alma de uma adolescência que não mais se repetirá - e que eu, agora, pretendo ressuscitar no seu conjunto para dar tanto quanto possível uma Fisionomia.' a qual eu desde já declaro ser pessoal e intransmissível, como bilhete de identidade sentimental. .. Por isso mesmo, mais vivida com amor, mais individualizada, mais para uso próprio, do que para lugar comum, hierático e objectivo. Por essa razão, se eu for além do que Vila Nova de Fozcoa é; ou ficar àquem do que ela, na verdade, também é - perdoai-me! Da mesma forma se vos parecer que exagerei naquilo que sobre ela e sua gente eu digo - perdoai-me ainda e sobretudo, aqui. Homem de lá de cima, não me sei ficar na comodidade fácil do meio termo: ou tudo ou nada. Daí que eu ame apaixonadamente a terra de que vou falar; e quem, apaixonadamente, feio ama, consequentemente lindíssimo lhe parece. E pode bem ser, este, o meu caso."
 INDELÉVEIS  RAÍZES

"Devo confessá-lo em voz alia: eu não sou de Fozcoa. Mas o sangue me prende lá, lá tem raízes o meu corpo e a minha alma. Não viesse de lá transferido o meu Pai, após qualquer acontecimento político, e eu por certo gostaria da terra por lá ler nascido e nada mais. Mas, ao contrário daqueles filhos de portugueses que nascidos no Brasil chamam galegos aos seus pro· genitores, foi por não ter nascido em Fozcoa que não gostei deIa: amei-a e amo-a e desse amor aqui venho prestar o meu pobre e pessoal testemunho. Nascido, pois, no Minho - sem querer como tantas vezes o tenho sublinhado, desde ,quando eu amo aquela outra terrinha, que fica para lá de tudo, quase resvés com a fronteira espanhola? Eu conto. 

Era eu muito menino quando me levaram a fazer a primeira viagem até ao Douro, e o Douro, para mim, era uma nebulosa de que recordo dois factos essenciais: o carro puxado a cavalos que me levou do Pocinho até à Vila e o pavor telúrico dessa caminhada, na carripana do Tio Elídio, em que se destacavam dois precipícios, onde o dito transporte naufragava vezes sem conta: o Vale do Nideo e o Roncle. Para mim o perigo era taludo e de meter num bolso a minha pequenina valentia ! ! Daí que nessa tarde rezasse mais padre-nossos e ave-marias, nos curtos nove quilómetros do percurso, do que por certo rezei nos outros percursos todos das minhas caminhadas! Foi a primeira vez que subi até ao cimo daquele monte - escalvado, seco, deserto e nu, como o definiria Guerra Junqueiro - na canícula daquele Agosto longínquo. De essencial isso e os ciprestes, muito esguios, muito estáticos, como guardas-fiscais de um reino de maravilha.

Mas a Vila que eu vejo, agora, diante de mim, que eu recordo aqui, não é esta esquemática figuração da infância; é aquela outra que se veio juntar a este esboço primitivo: uma impressão profunda hoje, um apontamento rápido amanhã; aqui mais uma cor, uma pincelada dramática, além mais um recanto que não se esquece mais; a vida diária com os garotos da rua nos jogos da infância - o estopa linho lã, casca de romã; o dicotim, dicolão; a ursa; a bandeira; o boloque, - o convívio com a gente do povo, com os falares, os dito>, as expressões castiças, as narrativas, as comidas de uma sobriedade quase esquelética e os trabalhos de campo que me seduziam à semelhança dos cantares das sereias. No fim: uma visão, uma imagem, um políptico do conjunto - mas tudo isto sempre renovado como as imagens de um caleidoscópio gigantesco, que com os mesmos vidros nos dão, categoricamente, sempre e sem mentiras um figurativo novo. Sim - isso é verdade - Vila Nova de Fozcoa é o meu caleidoscópio sentimental que desde menino não me canso de ver, porque sei que sempre verei uma imagem bela que eu ainda não tinha visto ou, pelo menos, nela ainda não tinha reparado."

 QUE LINDA COISA ESTA IGREJA É!"


"Fixo uma imagem desse caleidoscópio sentimental e meus olhos descobrem a Igreja. Que bela coisa, que linda coisa esta Igreja é! A sua volta. tudo o resto se me afigura pequeno: e Ela nem muito grande, nem muito larga, nem muito alta. Ou seja, como diz a fala do povo quando se refere a certas mulheres bonitas e muito bem feitas: é maneirinha! 

Também é maneirinha a Igreja Paroquial de Vila Nova de Fozcoa. Claro que, quando eu era menino, a Igreja me aparecia de outra maneira: com o seu lindo ritual, o cheirinho bom a incenso e a cera queimada, a missa do domingo que começava tarde, porque o senhor padre vinha d~ dizer a missa no Monte e sempre um Salvé Rainha iniciado por ele e depois acompanhado em colectivo pelo coro mais berrado e desafinado que eu ouvi em dias de vida - mas tudo tão do povo, tão português... E no fim desta missa pomposa a encomendação das almas, com dois tocheiros assentes num pano preto - que só diferia na riqueza de cada um - e a meninagem de opas e caldeirinha, fazendo rodado, num quase elu cá, tu lá> com as misteriosas coisas divinas! A igreja era ainda para nós, as procissões com belas opas, a disputa das lanternas, das campainhas, dos lugares no transporte dos pequenos andores ou dos estandartes; como era também as cantigas perfumadas a pinheiro e rezina do cancioneiro do Natal, com o seu bilinguismo como o nota Correia Lopes

Os pastores de Belém
todos juntos vão à lenha
p´ra aquecer o Deus menino
que nasceu na noite boína.

Enquanto o refrão nos deliciava aos ouvidos  puros  e levados de música importada  que agora se ouve no velho templo , em sinal certo e seguro do progresso


Vamos a Belém , a Belém, a Belenzinho, ou então as músicas marteladas a roxo de tragédia que anunciavam as endoenças. A Igreja era ainda levar a extrema unção, processional, àqueles que se estavam despedindo da vida efémera para entrarem na vida eterna ou acompanhá-los à derradeira morada e assistir aos grilos lancinantes que das janelas, das balcoadas ou das sacadas lançavam, gritavam, sentidamente, os familiares. E era, ó se era, as apavorantes missões dos padres espanhóis, cujo terror, ou domínio pelo terror, era tão grande que vi eu um rico-sovina despejar uma nota novinha de vinte escudos (no tempo das cor de rosa) na bandeja, perante a descrição terrificante do Inferno! Quando entro em qualquer Igreja de província e vejo a Cruz da Santa Missão eu ainda sinto um arrepio correr-me o corpo todo, pois me evado para as Santas Missões que iam até Fozcoa! 


Esta era a Igreja da infância e da adolescência: uma Igreja feita de melancolia e de saudade. A que contracena com «esta» não é menos bela, nem menos nobre nos seus 36, 1 5 melros de comprido, por 13,74 de largo - para quem se interesse pelo seu tamanho real - com sua frontaria em pedra lisa, sua porta em gótico florido, seu campanário com três sineiras e dois sinos grandes, sua rosácea a ligar um conjunto de sóbria beleza, acrescentada da decoração das armas reais portuguesas, e no centro dos dois escudos a imagem da Virgem com o filho nos braços - a que ninguém se lembrou ainda de chamar Pietá - mas a que dão o nome, bem nosso, de Nosso Senhora do Pranto, orago do Templo; depois, as duas esferas armilares com a cruz da Ordem de Cristo, emblema de El-Rei D. Manuel e a Flor de Liz, emblema de D. João I. No umbral do lado da epístola a inscrição relativa à obra de amplificação levada a efeito pelo Abade António Esteves Pereira. Esta a fachada do Templo, tal qual ele é, tal qual o estou descrevendo agora.

No interior três naves assentes em seis colunas de cantaria; uma grandiosa Capela Mor em talha doiraria e, seguidamente, no corpo da Igreja quatro altares. Não quero considerar o quinto altar que se pode ver na Paroquial fozcoense, monstruosidade - salvo o devido respeito - cometida, não há muitos anos e mantida, mesmo depois das obras de restauro, levadas a efeito pela  Junta dos Monumentos Nacionais! 



Só me resta acrescentar que esta Igreja de uma Vila de província possui um tecto lindíssimo em madeira, com «vistosa pintura» - no dizer de Pinho Leal - em cujo centro se destaca a Virgem, ladeada de figuras bíblicas. Claro está, que nestas não incluo a do Abade que levou a efeito a amplificação do Templo, atrás referida, retrato ou vera e1figi'e que fica perto do coro, devidamente legendado, com versículos do Eclesiastes




Foi rica de alfaias a Paroquial fozcoense, algumas que vinham do tempo do Rei D. Manuel. O que o tempo não levou, levaram-no os franceses; e o que os franceses deixaram ficar, levou-o o tempo, círculo vicioso em que se vão perdendo peças raríssimas do nosso património artístico e religioso. O perdido esplendor das alfaias foi acompanhado, infelizmente, pela consideração em que eram tidos os abades desta vila que outrora, à semelhança dos cónegos, tinham o direito ao uso da murça e do anel. Quem se recorda, agora, destas velharias? "


PASSOS DO CONCELHO

 
"Mas o caleidoscópio, por desejo próprio, tem de mudar. Ao lado, no prolongamento do mesmo largo, airoso e desanuviado das casas feias que o estragavam - o edifício dos Paços do Concelho, que é assim como que a fisionomia inalterável! da povoação. Quando eu era pequeno era lá que nas noites longas de Verão, brincava com meus camaradas, ao jogo do esconde ou do pilha. Não o olhávamos, por certo, com o respeito a que Ele tinha jús, respeito que só lhe manifestavam os homens de barbas, os quais, com gravidade lhe chamavam e chamam-a Administração. A nós, criançada buliçosa, que nos interessava que lá dentro estivessem todas as repartições públicas, desde o Tribunal às Finanças? Eramos, então, seres livres: sem demandas ... e sem dinheiro, duas coisas sem as quais o mundo não gira, as sociedades não progridem, as nações não se engrandecem... Dinheiro e demandas 1 E, nós, ali, autênticos bárbaros a rirmo-nos da justiça e mais pobres que os pobres que pedem na rua ...



Mas agora a coisa é diferente: a casa tem que se lhe diga. Não é o prédio vasto, à sombra do qual brincamos, corremos e vivemos a nossa vida passada. É o símbolo: a marca do passado, do presente, do futuro - o rio de Heraclíto, em cujas águas não nos banhamos duas vezes! A edificação, em si, é grandiosa, interessando, para já, bem pouco que a sua construção fosse levada a efeito entre 185 7 e 1868. Interessa, sim, o que ele representa: pois nele está Fozcoa , uma vila situada num planalto a 4 39 metros sobre o nível do mar, na margem esquerda do Coa, afluente do majestoso e profundo Douro que se descobre cá de cima, no Senhor dos Aflitos, em curva elegante, entre montes que reflectem o seu perfil, majestoso também, nas suas águas ora verdes de esperança ora castanhas de húmus, augúrio de uma abundância futura. Mais ou menos é isto que está na localização geográfica; e isto seria pouco se os Paços do Concelho não representassem mais. Neles está o passado nebuloso da fundação do povoado, depois da possível fragmentação do agregado populacional do Castelo Velho, no Mante Meão, essa ingénua mas bem abrigada defesa para os tempos da arma branca, de que lá restam pedras trabalhadas em esquadria, inscrições e uma ou outra moeda romana que n povo topa e os arqueólogos guardam.

Seria, possivelmente, este o germen da Vila de que hoje falo, melhor, da Vila que hoje recordo: um arroio toldado pela lenda que serve de história, quando a história não tem elementos para dar explicação. Deste modo os habitantes ter-se-iam espalhado pelas redondezas: pela Veiga, pelo Paço, pela Azinha te. Na Veiga, onde se ergue velha capelinha em honra da Senhora do mesmo nome, teria sido encontrado um esqueleto inteiro de proporções avantajadas, e uma estátua em jaspe branco que dava parecenças a uma mulher. Nas escavações das redondezas - como o refere o autor do Portugal Antigo e Moderno - «se tem encontrado ... ruirias de edifícios e sepulturas antiquíssimas soterradas». A própria capelinha parece ter sido paroquial, pois ainda nos fim do século XVIII pagava a censuaria «ao cabido de Lamego corno as outras igrejas matrizes». Veneração arreigada lhe tem o povo fozcoense que à sua Senhora da Veiga canta da seguinte forma os seus milagres



Nossa Senhora da Veiga
Fez um milagre no Monte:
Um menino pediu-lhe água
Logo se abriu uma fonte
 
A fontinha era d’ouro
A água era de cheiro,
O menino era santo
Filho de Deus verdadeiro


E tudo isto, poesia popular e música do povo, história e lenda, sonho e realidade - está naquele edifício que são os Paços do Concelho, imagem sublimada da biografia de um pequeno povo, evocação do passado, testemunho do presente, garantia do futuro. "

 O PASSADO

(…)"Da importância desta Vila, no seu passado, falam eloquentemente os dados que Pinho Leal nos dá, no Portugal Antigo e Moderno: «Em 1708 contava 60 fogos dentro dos muros do seu castelo e 500 nos arrabaldes - era abadia do padroado real -  tinha Casa de Misericórdia, Hospital e 9 ermidas - feiras a 8 de Maio e 29 de Setembro - 1 ouvidor, 2 juízes ordinários, 1 dos órfãos com seu escrivão, 2 vereadores, 1 procurador do concelho, 1 escrivão da Câmara, 2 tabeliães, 2 almotacés, 1 capitão-mor, 1 sargento-mor com duas companhias de ordenança e 1 companhia de auxiliares que obedecia à Praça d'Almeida». « ..

Em 1768 era também abadia do padroado real - contava 581 fogos e rendia ao seu pároco 300$00 reis. A «História Eclesiástica da cidade e bispado de Lamego, escrita, nos fins do último século por D. Joaquim d'Azevedo, cónego grande de Santo Agostinho e abade reservatório de Sedavim, publicada em 1877, dedicou um belo artigo a Vile Nova de Fozcoa, a quem deu 862 fogos, com 3.268 habitantes e 600$00 reis de rendimento». De tudo isto - para além do alargamento da área habitável e consequentes progressos materiais - resta um julgado municipal, triste e entristecedor, que se mantém por manifesto espírito de injustiça, apesar de seus habitantes clamarem aos astros o restabelecimento da sua antiga, tradicional e justíssima Comarca, à semelhança daquela mulher do povo, que em visita ministerial, saiu do passeio e destemidamente, na Rua de S. Miguel., assim interpelando o ilustre visitante:

Senhor Ministro, mande-nos a nossa Comarca! 


Pode mudar a imagem, pode mudar a gravura, podem mesmo mudar os figurantes; uma constante, no entanto,  fica, permanece, resiste e continua - a Terra! - a Terra que semelhante àquele Castelo onde está colocado o relógio constitue uma baliza de independência, do sentimento pessoal de independência desta humanidade bravia. Bem que o Senhor D. Afonso V - que havia de ficar na História com o cognome de o Africano - enovelado nas guerras com Castela pediu aos íncolas que o construíssem, exactamente por causa dessas lutas em que se achava metido ... Bem lhes ofereceu - a ver se erguiam ao céu a famigerada fortaleza - privilégios, entre os quais o de os fozcoenses não pagarem direito de alcaideria, à semelhança do que acontecia com os habitantes de Freixo de Espada à Cinta, bem aproximados dos de ali. Nem assim se resolveram; nem, tão pouco, a autoridade régia os convenceu!... Fizeram-no quando dele, muito bem, sentiram necessidade e só tenho que sublinhar a independência de outrora, o à vontade perante os grandes que ainda hoje se mantém, pela graça, pela pertinácia dos homens."

 A  TÊMPERA DAS SUAS GENTES

"Mas não é só esta virtude da raça, que se mantém, permanece e... ameaça continuar. Vã0 lá, estejam .Já e estudem esta gente. Observem-nos no seu habitat ou nas imensas colónias espalhadas pelo país, pelo seu património ultramarino, ou pelo Brasil; são sempre os mesmos, com um sentido - fora do seu meio - muito mais apurado da responsabilidade. 


Deste modo, as virtudes vêm ao de cima: a da lealdade - hoje quase esquecida... - a da bravura, do destemor, do apego brutal ao trabalho, da .Juta diária com a aspereza da terra, do respeito pela memória ou pela obediência aos maiores, da seriedade das mulheres a ponto de serem raríssimos os casos de adultério ou de prostituição, qualidades ou virtudes, que são autênticas constantes que a cinza do tempo não conseguiu extinguir ou sepultar, corno extinguiu e sepultou a comarca a fozcoense, como extinguiu e sepultou a murça e o anel dos seus abades, como sepultou e extinguiu, definitivamente, as ricas alfaias de que a Igreja era senhora e proprietária. No meio de tantas coisas más - valha-nos ao menos isso!



Povo de lavradores, a terra e os bicho> moldaram a vida e o carácter desta gente, E verdadeiramente empolgante a possibilidade, destas almas de Deus no trabalho esgotante de transformação a arroteamento do solo. Pode dizer-se - sem nada exagerar - que Deus, por certo criou toda esta região; mas o resto, as culturas, o transformar encostas escalvadas em vinhas verdejantes; o arrotear o quintalório florido de vegetais na canícula do verão; sem lucro palpável ou possível, tratar superficialmente a terra para o plantio do sumagre que evitará os profundos trabalhos naturais da erosão, dado que ninguém já se importa de tal arbusto para os curtumes; limpar os olivais, cavá-los e olhar os céus sem fim e sem nome a vier se o ano está ou não de azeite, e depois, por madrugadas polares ir varejar, apanhar e rebuscar a azeitona negra como um tição que em vez de queimar a polpa digital com calores a queima com geadas; adubar, lavrar e semear o trigo, a cevada, o centeio mondá-lo, duas vezes, ao diante, quando as favecas, os trevos e os pimpilros doem mais nos rins e nos lombos, do que as palavras ásperas dos capatazes  -

Fazer ao diante a ceifa com sedes que vem da alma, antes de estalarem o corpo e, seguidamente, na eira, esperar pela brisa que ajudará a alimpar o cereal, depois de batido e desencamisado: ir, ainda o sol vem nos quintos, fazer o varejar da amêndoa por uma solina capaz de meningitar qualquer peralta caído da cidade e sentir no corpo toda a sarna daqueles piolhinhos verdes mais incómodos, que a solina, a sede e o cansaço; fazer a vindima sem literatura, sem documentários cinematográficos, sem folclores  fáceis, como o fiz notar, há meses, ao meu amigo Rooney Pelletier da B. B. C. de Londres; arriscar-se ao impossível, desde a morte, à cegueira ou à inaptidão para toda a vida, como os que trabalham a pedra dos esteios do Poio, espalhada, em seguida, sem perigo por todo o país; pesquisar a água de beber ou a água para regar e depois esperar por ela, como moço casadoiro por namorada aperaltada - isso tudo, isto tudo - só pode ser feito, não me digam que não, pelos daqui! "

SUORES E FRUTOS

"A riqueza não lhes caiu do Céu - pródigo em calores infernais ou em frios  polares - mas avaro em tudo o resto. O pão de cada dia - o pão nosso que a Deus todos os dias rogam nos dai hoje vem-lhes da terra, a terra que biblicamente amanham com o suor de seus rostos. Bem sei - e de mais, quem o não sabe? – que eventualmente há o minério, designação geral dada à riqueza que jaz no mais recôndito seio da terra, quando a humanidade em conjunto perde a cabeça e decide derimir, pelo extermínio, aqueles problemas que podiam ser resolvidos pela boa vontade e pela boa fé; isso é, em nossos dias, quase cíclico. 

E também houve, em tempos que já lá vão e não tornam, a montagem da linha férrea que à Vila trouxe proventos, então, e até - quem o diria? ! - a criação de mais um hotel (assim se chamavam às casas de pasto) naquela terra sem turismo visível. Mas tudo isto são gotas de água, mais ou menos passadas, para mitigarem uma sêde ardente. Constante, constante real e verdadeira só a terra; daí que não espante a ninguém que o nome de tantas famílias seja, com exactidão, o nome dos produtos mais comuns à sementeira anual: Trigo, Centeio, Cevada, Serôdio, por exemplo, homologação que ultrapassa a simples e possível influência judaica.


Na realidade, se não fosse a terra, o que seria desta gente toda que desconhece - e que bem que isso é - os processos malthusianos de obstar à continuidade e proliferação da espécie? Suas velhas indústrias estrebucham na agonia, se é o mesmo que não morreram já. Os carretões foram, em grande parte, substituídos pela velocidade, comodidade, rapidez e baixo preço da camionagem; a manufatura da cordoaria - criação de larga visão de fomento do Marquês de Pombal, perante a riqueza da veiga da Vilariça que produzia cânhamo tão bom e tão abundantemente que nos libertava das onerações advindas da importação do cordame da Rússia - à semelhança da de Moncorvo, não pôde competir com a fabricação mecanizada e em série de outros centros industriais, nascidos e florescentes posteriormente; o fabrico do calçado grosso par a os homens da lavoura não tarda que estiole também ou então desapareça, dado que não aguentará a competição com os centros fabriqueiros, onde a máquina substituiu o braço, e o labor directo do homem, com vantagens - sem dúvida - diversas; a própria preparação do sumaagre, para a extinta indústria de costumes regionais, ou para a restante .laboração fica dispendiosa se a compararmos com o preço de seus substitutos químicos, modernos. 

 O LEGADO RELIGIOSO 

Creio - desta maneira - que não exagerei ao afirmar a constância da terra, ficando como subsidiários deste grande, deste ingente esforço, aqueles que continuam fabricando os típicos «carros de varas» em negrilho, ou então, aqueles outros que continuam fabricando os arreios para o gado cavalar ou seus híbridos e o apeiro para o gado bovino. Porque, repito, isso é ainda uma faceta das indústrias que vivem directamente ligadas à terra. Por esta razão, as capelinhas estreitamente ungidas às antigas corporações serão lembradas, já não pela corporação em si, mas pelos fiéis que recorram a S. Sebastião caso haja peste, sejam sapateiros ou não; da mesma forma pelos que rezam ao Santo António, sem serem cordoeiros; ao mesmo tempo que os almocreves, hoje desaparecidos, não irão fazer a festa da Senhora do Amparo; e só à Santa Bárbara os cavadores e os outros que o não são, irão suplicar a sua protecção para as searas ou para as colheitas diversas; os estudantes mal se lembram que a sua festa devia ser feita a Santa Luzia, na capelinha de Nossa Senhora da Aldeia Nova, e os rústicos moleiros, já tão raros, não farão o festejo de S. Pedro, seu patrono, pois que se o cereal não for moído a tempo o freguês pode alancar para as instalações modernas da fábrica; a própria capela de Nossa Senhora da Conceiçâo - que «foi matriz dum pequeno curato do chantre de Lamego anexo à Igreja (abadia) de Numâo” só uma vez por outra fará ouvir seu característico toque de sino, anunciando missa em cumprimento de qualquer voto avulso ou avulsa, não menos avulsa, promessa.

Só ficará sempre acompanhada, sempre visitada, sempre com a presença do calor humano a capelinha do Senhor dos Aflitos, ao cimo do caminho da Costa, por ser lugar aprazível, passeio obrigatório e mirante natural de uma beleza tão grande que terá - em todas as épocas, de baixo das suas árvores a permanência da assiduidade que dali vai observar a majestade do rio Douro, a alegria verdejante do Vale que se espreguiça ao fundo da paisagem, ou então a rotunda saliência dos montes que esbracejam por todos os lados para onde o observador se volte.

Ao menos que perdida a função das velhas corporações essas capelas, testemunho da religiosidade antiga, não sejam abandonadas ao camartelo do tempo, que no seu bater surdo e contínuo é prenúncio daquela ruína que antecede a morte, a morte que sepultou para sempre no seu manto de gelo e de esquecimento - as capelas d" $. Vicente, de S. Miguel, de Nossa Senhora da Encarnação e da Expectação - cuja memória de existência se perde pelos caminhos da memória humana.

 TERRA DE JUDEUS

É costume - e novamente mudo de imagem no meu brinquedo sentimental - dizer-se que Foz Coa é terra de judeus. Não nego a afirmativa, nem tão pouco pretenderei justificar ou desculpar a terra de epíteto, por muito julgado infamante. Sim, em Foz Côa houve judeus e a sua permanência em nada afectou a vida do povoado. Não sei se muitas das virtudes dos autóctones serão derivadas da miscigenação, s·~ do exemplo, se mesmo da compita com os filhos de Israel. De qualquer forma, em região onde os tipos humanos são de físico meão, cabelos negros e faces morenas - aparecem homens loiros ou ruivos, de olhos atravessados entre o azul e o verde - olhos de gato, diz a gente de lá - com estatura avantajada e fora do vulgar. De onde vieram estes tipos humanos tão diferentes do comum da generalidade?


De qualquer forma a permanência judaica em nada prejudicou a população fozcoense ; a uma família de Vila Nova de Fozcoa está ligado Ribeiro Sanches - sábio de renome científico que não necessita de mais -encómios - a quem se deve a revolução pombalina nos estudos universitários de Coimbra. Quis só citar este nome: o de um judeu que não sendo de Fozcoa a ela está ligado pelos laços do sangue, o qual honrou não só a raça a que pertencia, como a nação e a cultura de Portugal. 

 FESTIVIDADES





(...) Festividades colectivas que hoje existam ainda, com a pompa de outrora, podemos dizer que se cifram às da Semana Santa - Endoenças -, Corpus Christi e Nossa Senhora da Veiga que em 8 de Setembro era costume celebrar na Igreja Matriz, ficando os festejos de Março para a sua Capela própria. Hoje o povo acorre aos festejos da Veiga, que são em boa verdade festejos que honram não só a Virgem que o povo adora, mas ainda a piedade que se mantém viva, geração após geração






Atiro com meus olhos para longe. Andaram


Creio que quem tenha andado pelos vinhedos durienses, pelos vinhedos bairradinos, pelas vinhas-hortas do Minho, deve ter reparado numas pedras onde as videiras trepam e se engastalham, pedra negra, mas negra mesmo apesar da diversidade dos tamanhos. É a pedra tir ada das entranhas do monte do Poio, pedra xistosa, que se «rasga» - segundo o vocabulário popular - como costureira adestrada rasgará uma peça de riscado ou de qualquer outro tecido de algodão. 




Essa pedra foi uma das grandes riquezas regionais; hoje, não o é tanto; mas, apesar disso, continua a sua extracção em menor escala e volume, alimentando o escasso mercado do plantio ou renovação da vinha. Por vezes a importação faz-se mesmo por luxo: o endinheirado que desejou ter o seu jardim hortícola, com ademanes de ineditismo. No entanto quantas lutas, paixões, mesmo ódios, a pedra negra do Poio não trouxe consigo ... Mas o tempo esbateu todos esses maus sentimentos; como já esquecidas estão as vítimas das explosões, na extracção da pedra. Existia ainda há anos, um velho distribuidor de jornais - o Chapinha - que era um exemplo vivo desse passado turbulento, Cego de ambos os olhos pela explosão extemporânea, derivou as suas actividades para a distribuição dos periódicos ... 

 O POIO

Não se envolveu na comum exploração da piedade alheia. Essa máscara viva, humana do passado, que eu recordo aqui, ao recordar esse homem que era meu amigo, como o fora decorreu Pai e de meu Avô, a cujo serviço se inutilizara. A ele perguntei muitas vezes como era lá feito o trabalho, evocando aqueles poços fundos e negros que eu vira como turista e que ele vivia, como mutilado. Fugia às respostas, divagava... E sou eu que, agora, aqui - evoco os montantes, trabalhadores que habitualmente se ocupavam na extracção da pedra das pedreiras, segundo as instruções e medidas que recebiam dos mestres de obras; os apare/fiadores ou canteiros que depois «trabalham e afeiçoam a pedra» e, finalmente, os assentantes que colocavam e assentavam a pedra nos edifícios, quando a pedra a eles era destinada. Passado longínquo de um corporativismo ingénuo, popular e altamente marcado no topo, da sua hierarquia por mestres e contra-mestres. 


'Depois de ter feito esta viagem à volta da minha curta vida, interseccionando-a com a vida que eu sei do povo e a que o sangue me liga, eu desejo evocar, em último momento de melancólica recordação, as tardes que eu passava no campo, enquanto uma brisa de 'Verão, suave e benéfica, acariciava a carapinha das árvores alevantando ao ar as pequeninas coisas que se deixam envolver no seu abraço acariciante. Era então junto ao poço do Campo, quase pegado aos esteios do Poio se espreguiçavam os ramos verdes do sumagre, cuja estiolação eu testemunhava tarde a tarde. Eu via o verde vivo transformar-se na mesma cor, mas agora doentia e parda; depois assistia à sua mirragem, à sua morte para dar origem ao produto útil, sob as pancadas metódicas dos mangoais. 

A miudagem pobre trazia caixotes vazios, onde a sardinha salgada tinha ocupado lugar, ·e enchia"' os dos gravetes que sobravam daquela flagelação, os quais serviriam para aquecer a ceia do dia a dia, quando não de reserva futuramente combustível, para quem não possuía outros haveres que não fossem os iguais aos lírios do campo de que Jesus falou no sermão das Bem-aventuranças ... 


Mal sabia eu - e nunca vi - que o sumagre - seria depois de batido transportado para as atafonas, onde a sua existência seria reduzida a pó, aquele pó a que todos estamos condenados, mesmo considerando a lei da conservação da matéria ... 


Chego ao fim desta minha jornada pela terra que eu amo apaixonadamente e por cujo amor vos fiz perder esta noite, num monólogo monocórdio, de que eu fui principal agente e autor. Acreditai que valeria a pena, quando dispusésseis de tempo, irdes até lá; viverdes com aquele povo, hospitaleiro e bom, ainda que vertical e duro como o diamante que é capaz de quebrar, mas nâo há exemplo de que tenha torcido. A sua verticalidade pode dar-lhe o cariz com que o definiu o já citado Pinho Leal: 


Vila hospitaleira, sem dúvida, «mas esteve sempre dividida em partidos exaltados que à mais leve provocação se não poupam a hostilidades de toda a ordem, - vinganças, perseguições, pancadas, facadas, tiros, incêndios e mortes!» Certamente aclimatado ao sedativo verde minhoto, Pinho Leal esqueceu-se da braveza desta paisagem sem repetições; disperso pelas muitas terras que descreveu, faltou-lhe a perspectiva para cada uma; experimentado na doblez do carácter dos homens que conheceu e com quem contactou, sentiu-se estranho perante esta humanidade diferente; historiando ao de leve o Portugal Antigo e Moderno, relegou, com certeza o Portugal eterno, na perenidade das virtudes marcadas da ruça. Sobretudo não se lembrou de duas constantes: o homem e a terra. Esta moldando o seu habitante ao seu clima; aquele afeiçoando cada contorno à sua natural maneira de ser, mas ambos constituindo uma realidade que se completa, que se interpenetra, que é um todo que não pode ser estudado em fracções, uma de cada vez.



E pronto: estou no fim do meu trajecto lírico, sentimental e humano. As minhas últimas palavras estão a soar, para alívio de quem me escuta e para desempenho da minha missão pessoal. Desculpai-me tão enfadonho fim de semana, perdoai as asperezas da minha voz, o irrequietismo da minha imaginação, o meu pouco saber, a minha dispersão e até a ausência das coisas que vos queria dizer e não disse. Se fordes tão benévolos que possais esquecer-me e esquecer esta noite em que' vos trouxe aqui, não por méritos próprios mas por benevolência e amizade alheia, eu me sentirei absolvido e compensado. E mais absolvido e compensado me sentirei se um dia recordardes a minha terra como eu a quero recordar nesta síntese final: