Como o devido respeito para os espíritos bem intencionados, que os há, naturalmente, e deverão ser mais que os maus, e mal iria o mundo se assim não fosse, no entanto, penso que não estarei errado se disser que a quadra natalicia é também a dos dias da máxima hipocrisia sair à rua. Não há corrupto que se preze que não ofereça a sua boa lembrançazinha ou lembraçazona. .É a face oculta mais cínica do capitalismo corrupto e corruptor. Que é transmitida com os mais inocentes e gentis sorrisos. Ninguém é mau neste dia. Os que são maus, à força de tantos enfeites e alegorias, hinos de amor e de paz que se ouvem por estes dias, sentem-se como que naturalmente impelidos a deixarem de ter remorsos das suas maldades ou patifarias. Se é que alguma vez os tiveram!... E os que são bons, sendo já bons por natureza - sobretudo os pobres de espírito, porque, segundo diz a doutrina bíblica, deles é o reino do céu - sim, então estes nem sequer têm tempo de pensar no mal (e na exploração) que os outros lhe fizeram. Na óptica cristã continuarão a ser os símbolos das mais exemplares virtudes da igreja.
Na verdade, até parece que o Natal funciona como uma espécie de esponja ou detergente: lava todas as máculas do pecado - Este ano, não foi isto que se verificou no Palácio de Belém, onde os apelos à clemência e à bondade estiveram sensivelmente à altura da crise que afecta a algibeira da maioria dos portugueses, ou seja, muito em baixo!!!... -Aníbal foi muito parco em perdões - Porventura, terá estendido que as cadeias ainda não estão suficientemente superlotadas e que ainda há por lá muitos lugares vagos à espera de novos hóspedes -Cavaco Silva concedeu dois indultos de Natal Mas ainda bem que, nos 365 dias do ano, há pelo menos um que tem o condão de ser bom – Obviamente, quem passa fome, dificilmente deixará de a sentir. Os comerciantes fazem mais uns trocos e os ricos não deixam de ser ricos.
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Não me tendo deslocado à minha aldeia, optei por ficar em casa, na cidade. Era aí que gostaria de viver o solstício do Inverno à minha maneira, mas tal não me foi possível. Ou antes, até era, mas a reforma obriga a poupanças. De véspera, não fui cear com ninguém. Apanhei um pouco de sol no meu terraço, mas por pouco tempo – É a melhor coisa do desvão (em que habito) que desfrutam as minhas águas-furtadas. Desliguei o telemóvel, não estive disposto a receber telefonemas de ninguém. Pus-me ao computador e enviei uma série de mensagens de Boas Festas a umas quantas pessoas. Algumas das quais nem as conheço. De algum modo, também não me livrei da mesma hipocrisia. Mas o desejar coisas boas, poderá não surtir efeito algum, contudo, ao menos dá-nos uma sensação de que estamos a ser solidários ou a cometer uma boa acção. Se bem que, na generalidade da situações, não passe de meras intenções de cortesia. Seja como for, entre tanta crueldade e violência, que grassa pelo Mundo, salve-se ao menos o espírito natalício. O meu foi o de me isolar complemente do mundo exterior. Aliás, é já quase um hábito.
O solstício do Inverno, ocorreu no dia 21. O dia em que as sombras da noite são maiores que o a claridade do dia. Uma data, que os povos antigos, associavam à fertilidade e às divindades ligadas ao culto solar. A igreja, no entanto, quis aproveitar-se desta efeméride, como, aliás, o fez com a Páscoa e outras datas, impondo o seu calendário litúrgico e banindo e perseguindo os demais cultos.
Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
Excerto de: Dia de Natal (António Gedeão)..
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