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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

PERDIDO NO GOLFO DA GUINÉ: A LONGA JORNADA DE SOBREVIVÊNCIA - 38 DIAS NO MAR DOS TORNADOS E TUBARÕES – Deus, algumas vezes, obriga os seus filhos a suportarem um duro calvário para escutarem mais de perto e mais alto a sua divina palavra.


JÁ LÁ VÃO 45 ANOS -  NAVEGANDO COM O REMO IMPROVISADO, POR ENTRE ONDAS ALTEROSAS, PROCURANDO, NA MEDIDA DO POSSÍVEL, QUE AS VAGAS NÃO VOLTASSEM A PIROGA - NÃO HAVIA PROPRIAMENTE HORIZONTE À MINHA FRENTE OU EM REDOR, SENÃO O MAR QUE SE LEVANTAVA, SE DESDOBRAVA., DESDOBRAVA E LEVANTAVA.

VALE A PENA SACRIFICAR A VIDA POR UM IDEAL QUANDO SE TEM A CONVICÇÃO DE QUE O ESFORÇO É PLENAMENTE MERECIDO E JUSTIFICADO.
Sou natural de Chãs, de Vila Nova de Foz Côa, resido em Lisboa, mas vivi durante cerca de 13 anos em São Tomé e Príncipe, onde realizei várias aventuras marítimas, em pequenas pirogas primitivas, uma das quais a tentativa de travessia oceânica ao Brasil, que acabaria num naufrágio de 38 longos e penosos dias: sozinho, por entre tornados e calmarias, nos mares do imenso Golfo da Guiné

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Foi difícil essa minha provação. Debilitado, fisicamente, acabei por dar à Ilha de Fernando Pó: nos últimos dias mal me podia manter de pé, muito fraco, já quase no limiar das minhas forças. Nunca me pude abrigar nem da chuva nem do sol. Nem das sucessivas investidas das vagas. Completamente exposto aos elementos. Ficava deitado no fundo desse tronco escavado. Nem sequer dispunha da mais elementar cabine de abrigo. O baú onde guardava algumas coisas (incluindo a máquina fotográfica e um pequeno gravador) era um caixote do lixo de plástico, igual aos que ainda hoje se vêem à porta dos prédios nas cidades.

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Imagem captada no momento do ataque do tubarão - o barrote que se vê, estava atravessado de través e servia para ajudar a conferir algum equilíbrio à canoa, na triste deriva em que vogava

Foram momentos de extrema aflição, que me pareceram verdadeiras eternidades, durante 38 longos e difíceis dias, enfrentando tempestades, sucessivas, incluindo ataques de tubarões. Ainda cheguei a apanhar alguns de pequeno porte, enquanto tive anzóis. Mas, até estes, mais tarde, me haveriam de faltar. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é difícil imaginar pior situação
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Todavia, a imagem que ainda hoje continua mais nítida na retina dos meus olhos, é o pavor daquela noite negra e tempestuosa, quando o tornado me surpreendeu. Mesmo assim, com a canoa completamente desgovernada, em pleno mar aberto e ameaçador, não cruzei os braços e nunca me dei por vencido. Peguei num dos mastros e coloquei-o de través para garantir algum equilíbrio. Um dos bidões foi amarrado a uma corda e largado para servir de âncora flutuante. No dia seguinte improvisei um remo com um dos barrotes do estrado da canoa e pedaços da cobertura, a fim de conseguir dar alguma orientação. Mas de pouco me haveria de valer, face à fúria dos constantes tornados. Como bóia de salvação, utilizei o resto do estrado e adaptei-lhe um pequeno colchão de ar - Frágil recurso para forças tão descomunais.

Se não tivesse já realizado duas viagens anteriores, igualmente em pirogas, dificilmente teria aguentado tamanha prova de sobrevivência, depois de ter perdido os remos, a maior parte dos meus apetrechos e ter ficado, praticamente, sem alimentos e água potável.
De facto, para sobreviver, tive que beber água do mar e das chuvas durante vários dias sucessivos e alimentei-me de alguns peixes que pude apanhar e de algumas aves, que, pousando, para repousar, sobre a frágil canoa, com imensa tristeza minha, fui forçado a sacrificar.
Acabei por ser arrastado pelas correntes até à Ilha de Fernando Pó, já no limiar da minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e preso numa cela de alta segurança, a mando do então Presidente Macias Nguema, após o que fui repatriado para Portugal, tal como me acontecera na Nigéria. Mas, agora, graças a uma pequena mensagem que levava do então jovem Governo de São Tomé e Príncipe, que recentemente tinha ascendido à sua independência, para saudar o povo irmão brasileiro, quando aportasse na sua costa.

Porém, a primeira das minhas aventuras foi a ligação de São Tomé ao Príncipe, em três dias. Parti à meia-noite, clandestinamente, levando para me orientar, apenas uma rudimentar bússola. Fui preso pela PIDE (polícia política do velho regime colonial), por suspeita de me querer ir juntar ao movimento de Libertação de STP, sediado no Gabão. Enfrentei dois tornados, à segunda noite, adormeci e voltei-me com a canoa em pleno alto mar. Esta era minúscula e foi um verdadeiro drama ter-me conseguido salvar.

S. Tome - Nigéria

A segunda viagem foi uma travessia de São Tomé à Nigéria, cinco anos depois, numa piroga um pouco maior. Parti, igualmente, sem dar conhecimento a ninguém, ao começo da noite, servindo-me apenas de uma modesta bússola. Ao cabo de 13 dias chegava a uma praia ao sul da Nigéria, tendo sido detido durante 17 dias, por suspeita de espionagem, após o que fui repatriado para Portugal. Os jornais nigerianos destacaram em primeira página esta minha aventura.

Regressado a São Tomé, ainda no mesmo ano, e já com São Tomé e Príncipe independente, tentei empreender a travessia ao Brasil, entre outros objectivos, com o propósito de evocar a rota da escravatura através da grande corrente equatorial, contribuir para a moralização de futuros náufragos, à semelhança de Alan Bombard.

Segundo este investigador e navegador solitário, a maioria das vítimas morre por inacção, por perda de confiança e desespero, do que propriamente por falta de recursos, que o próprio mar pode oferecer. Era justamente o que eu também pretendia demonstrar - Navegando num meio tão primitivo e precário, levando apenas alimentos para uma parte do percurso, munido, unicamente, de uma simples bússola, sem qualquer meio de comunicar com o exterior, tinha, pois, como intenção, colocar-me nas mesmas condições que muitos milhares de seres humanos que, todos os anos, ficam completamente desprotegidos e entregues a si próprios – Porém, quis o destino que fosse mesmo esta a situação que acabasse por viver.

A canoa foi carregada num pesqueiro americano para ser largada, na corrente equatorial, um pouco a sul de Ano Bom. Porém, à chegada a esta ilha, o comandante propôs-me abandonar a canoa e ficar a trabalhar a bordo, alegando que a mesma estorvava e que a aventura era muito arriscada. Na impossibilidade de ser levado para a dita corrente, decidi-me pelo regresso a São Tomé para tentar a viagem noutra oportunidade. Foi então que uma violenta tempestade, me surpreendeu em plena noite, tendo perdido a maior parte dos víveres, os remos e outros apetrechos. Foram momentos indescritíveis. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é pois difícil imaginar pior adversidade.

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Já se passaram vários anos, porém, essa minha experiência ainda está muito presente na minha memória – E duvido que algum náufrago, alguma vez possa esquecer os seus longos momentos de abandono e de infortúnio.
Mas não estou arrependido: julgo que valeu a pena - Pois norteavam-me propósitos bem nobres - Além do que já descrevi, os objectivos dessas minhas travessias foram vários: 

Treinos de preparação - Para a travessia S.Tomé-Principe
Antes de mais, o fascínio que o mar exerceu em mim, desde o primeiro dia que desembarquei, do velho Uíge, ao largo das azulíneas águas da Baía Ana de Chaves, fronte ao cais da linda cidade de São Tomé; o desejo de me encontrar a sós com a solidão e a vastidão do oceano e, de perante esse cenário, de me poder interrogar, ainda mais de perto, sobre a presença e os mistérios de Deus. Mas também por razões de carácter histórico-científico e humanitário. Tais como: evocar a rota da escravatura, ao longo da grande corrente equatorial, lembrar esses ignominiosos tempos do comércio de escravos e chamar atenção para esse grave problema que, sob as mais diversas formas, continua afectar a existência muitos seres humanos, na actualidade. 

Demonstrar a possibilidade de antigos povos africanos terem povoado as ilhas, situadas naquele imenso Golfo, muito antes dos navegadores portugueses, ali terem chegado, contrariamente ao que defendem as teses coloniais, que dizem que as ilhas estavam completamente desabitadas - E a verdade é que, entretanto, já foram encontradas antigas cartas, num dos arquivos italianos(de navagedores árabes do século XIII, graças ao trabalho de investigação de Fernanda Durão Ferreira, jornalista, investigadora e sócia da Sociedade Portuguesa de Geografia – secção de História.) cartas através das quais são localizadas e atribuídos nomes às ilhas do vasto golfo. 

Pêro Escobar e João de Santarém navegaram para o Golfo da Guiné à procura desta Ilha de Asben que, como afirma Duarte Pacheco Pereira, “ mandou descobrir o sereníssimo rei D. João II”. Quis a sorte que ela fosse achada no ano de 1470, a 21 de Dezembro, dia do santo descrente que só acreditava no que via e apalpava. Mais confiantes que o apóstolo, devem ter velejado os dois navegadores portugueses à procura desta ilha pois se o rei a mandara descobrir, é porque sabia de antemão da sua existência. Chamaram-lhe São Tomé e zarparam à procura das outras duas. Sanan e Malicum foram encontradas a seguir, sendo baptizadas de Santo Antão (passando depois a Santo António, sendo mais tarde chamada Príncipe) e Ilha Formosa, redescoberta por Fernão Pó, conhecida hoje por Malabo, capital da Guiné Equatorial.” - In O Redescobrimento das Ilhas do Golfo da Guiné.
 
Por conseguinte: está suficientemente demonstrado de que estas ilhas (tão férteis e formosas) não estavam ali à espera de que fossem os olhos europeus (ou até os árabes) a terem a dita de serem os primeiros homens a contemplá-las. É minha convicção de que, já muitos antes deles, os povos africanos limítrofes as tinham visitado e povoado, através das suas pirogas. E foi justamente essa tese que eu quis comprovar e que continuo a defender. 

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Ele correu perigos que assustariam o mais corajoso, incorreu em temeridades que não visavam o lucro mas uma meta mais longínqua. Um insatisfeito desejo de se afirmar e de demonstrar que moram no homem, e com ele vivem , recursos insuspeitados e adormecidos.Não se pense que se referimos a um aventureiro gratuito, que apenas pretende chamar sobre si as atenções, sem objectivos louváveis. Nada disso.(...) "
"As gravações a que procedeu no mar são empolgantes e transmitem o estado de espírito do homem que se encontra só e não conta senão com ele e com Deus. A resistência do homem á fome, à sede e ao desespero, constituem uma constante do seu relato. É comovente a transcrição do feito de Jorge Marques, o qual justificava a publicação de um livro, contendo, em pormenor, o que a escassez do espaço de um jornal não comporta."
A descrição que passou á deriva numa piroga no Golfo da Guiné, se levada ao cinema, daria um filme memorável, principalmente se o realizador extrair da odisseia a espantosa variedade de facetas que ela oferece.” Excertos do Jornal Novo – 25.9.76

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