
As melhores homenagens que se podem prestar aos poetas, não creio que seja apenas depois de nos deixarem mas enquanto estão vivos e o seu pensamento ainda transmite a pulsação da mais bela poesia - É o caso de António Ramos Rosa - Já aqui me referi a ele noutras postagens - Mas, hoje, nesta noite fria e chuvosa de Inverno, em que fiz os meus sessentas e tais (domingo mais chato, nem sequer saí à rua) enquanto ouço Nana Mouskouri, recostado na minha cama, pois a minha mansarda fica num desvão do telhado e é deveras insalubre, lembrei-me dele e de sua mulher. Lembrei-me de recordar "o poeta da unidade vital" os agradáveis momentos que ambos me deram a oportunidade de conviver em sua casa e até em curtos passeios próximo da sua residência, na Barbosa du Bocage, em Lisboa
Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.
(...) O poema é devorado letra a letra por um silêncio
que o atravessa sem tocar nas palavras nem no
silêncio do poema
Na aridez do frio
Nenhum insecto vibra
nem uma fibra estala
Quem pode erguer o canto
sem uma pedra
sem uma sombra
sem um grito
Não há sequer a sombra de um grito
Nenhuma sombra é um grito
A impossibilidade do canto é talvez a possibilidade
de um impossível canto. Com as palavras nuas e
vazias de uma pobreza exausta talvez possa ainda
ouvir o rumor de um chão e um silêncio de ervas
e de frases na ausência do amor e no silêncio de
um corpo destroçado
Só a palavra em branco
e a ferida sem nome
no silêncio
O sangue? Será sangue? No insondável silêncio em
que se abismam as palavras?
Só no silêncio da página poderá erguer-se a palavra
do silêncio inascessível o centro ausente da linguagem
o extremo em que a palavra se destrói e renasce no grito
em que se cala a palavra"
Excerto de um poema do livro "O Centro na Distância"
de António Ramos Rosa
19 de Maio (segunda)1980 - Excertos de conta-corrente e - de Vergílio Ferreira
"Ontem, como muitas vezes, fui a casa do Ramos Rosa. Vou lá aos domingos, pela manhã, para um pouco da cavaqueira. Quase sempre trago livros, ele empresta, tem-nos sempre muito bons. E filosofamos um pouco sobre política, literatura, chatices da vida. Não é bom conversador o Rosa. A gente passa-lhe a bola e ele mete-a no bolso. Cala-se, hesita, ou diz apenas que sim.
Ontem diz que não. Foi a propósito da "inteligibilidade" da poesia. Está na berra, aliás, essa coisa da "inteligibilidade", tem sido mote para muita glosa. Ramos Rosa deve ser quem mais sabe da poesia em Portugal. Conhece-os mesmo de uma troca muito activa de epistolografia . Um dia se há-de saber com alguma estupefacção quanto ele conviveu e tem sido mote para muita por epístola com os grandes nomes estrangeiros da poética contemporânea. Bom. Portanto, a "inteligibilidade". Isto a propósito do seu último livro, o Incêndio dos Aspectos, que eu prefaciei. Rosa está contente com o seu trabalho. Poesia "nova" no seu currículo, mesmo no currículo nacional. Várias das visitas que teve- porque a gente vai visitá-lo porque um pouco ao modo como os outros vão a Meca ou a Fátima ou a outro santuário - enalteceram-lhe os versos, discorrendo sobre eles com abundância. Já mo disse ao telefone. Porque, o seu convívio, desdobra-se pelo telefone e pela epístola." (...)
Vergílio Ferreira
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