Ao longo da existência de cada vida, muitas outras vidas se cruzam. Não as da rua, pois essas seriam imensas, mas as que conhecemos, com as quais nos relacionamos, foram companheiras da mesma jornada ou, pelo menos no mesmo local de trabalho, tal foi o meu caso com Manuel Cintra Ferreira. Conheci-o numa destas circunstâncias.
.
Já lá vão quase vinte anos. Mas, obviamente, não posso deixar de me lembrar do homem que, além de colaborador do Expresso, era também crítico de cinema no programa radiofónico Café Concerto, de Maria José Mauperrin. Ainda fui ver alguns filmes graças a convites que lhe eram dirigidos e teve a gentileza de me oferecer. Era realmente uma autêntica enciclopédia viva do cinema. Não havia filme que ele não tivesse visto ou que não conhecesse.
"Então o que é que trazes para o programa de hoje, ó T...?.- perguntava-me., por vezes, quando já se encontrava sentado na sua secretária e eu estava a chegar. Era uma forma de cumprimento e de principiar o diálogo. . E tu, Cintra, que tens para hoje na tua critica de cinema?.... Gostava dos meus apontamentos, pedia-lhe opiniões e eu também apreciava muito os seus comentários. Encontrava-o sempre bem disposto, bem humorado. Era um homem terra terra: o oposto aos que gostam de andar a pavonear-se de lacinho e bem engravatados. De tal modo era esse seu desprendimento que chegava a parecer o típico português do campo. Isso avinhava-se-lhe na fisionomia: muito parecida ao homem comum. De carácter simples mas muito atento, pleno de confiança na sua formação e cultura..
Era crítico de cinema mas creio que não lhe interessava apenas o que se passava nas histórias dos filmes; pelo que depreendi, a sua curiosidade estendia-se também às vidas dos "actores "da rua. Era um excelente observador dos comportamentos e dos costumes. Fazia-lhe a radiografia e tirava-lhes a máscara. Não criticava ninguém mas reagia à sua maneira, com um certo sorriso meio matreiro e complacente, logo que sentisse ter logrado "despir" mais um mascarado. Via-se que não cultivava poses para mostrar que era um senhor intelectual Não precisava disso: estava de tal maneira talhado para a actividade que desempenhava, que dir-se-ia absorver a cultura cinematográfica, como a mesma naturalidade e à-vontade como as sanguessugas quando absorvem o sangue. Nada lhes escapava.
Várias vezes tomámos a bica juntos ao balcão do mesmo barzinho: "O Coice" Onde também se juntavam outros profissionais da mesma estação. E, naturalmente, a realizadora do programa - a Maria José - também ela, tal como Cintra, colaboradores do semanário Expresso. Foram bons tempos e bons programas. Mas, agora, mesmo depois de uma longa ausência de convívio e de trabalho, parece-me que o vazio, que já se instalou, ainda é bem maior, pois surge a inesperada notícia de que, afinal, o José Cintra Ferreira, já só poderá esperar por nós, quando também chegar a vez de nós partirmos. Por isso, embora já cheios de saudades da sua partida e expectantes de que possamos vir a viver mais umas quantas estações do ano, temos que nos conformar com as boas recordações que nos deixou: temos que nos render àquela sua expressão risonha e aberta, olhar miudinho sob as lentes graduadas, que, em cada palavra amiga, fazia sobressair ainda mais o seu rosto e o bigode, imagem que já nos era tão familiar, e nele tão natural mas que continuará a ser agora sem sombra de dúvida, a expressão e o rosto inesquecíveis: - na memória de todos quantos com ele trabalharam ou o conheceram e forjaram as melhores recordações e amizades
.Lembro-me de que, às vezes, quando não trazia o aparelho auditivo, era preciso falar-lhe um pouco mais alto ou aproximarmos-nos um pouco dele. A que então correspondia, invariavelmente, com um ainda mais expressivo e largo sorriso, talvez para nos compensar da pequena maçada. Espero que, no Além, ele possa escutar - sem qualquer recurso - a voz do silêncio! E até outras vozes que coabitem com a sua ou - mesmo separadas pela fronteira de outros mundos - conquanto se aproximem da sua e manifestem desejo em comunicar.
.
.
Já lá vão quase vinte anos. Mas, obviamente, não posso deixar de me lembrar do homem que, além de colaborador do Expresso, era também crítico de cinema no programa radiofónico Café Concerto, de Maria José Mauperrin. Ainda fui ver alguns filmes graças a convites que lhe eram dirigidos e teve a gentileza de me oferecer. Era realmente uma autêntica enciclopédia viva do cinema. Não havia filme que ele não tivesse visto ou que não conhecesse.
"Então o que é que trazes para o programa de hoje, ó T...?.- perguntava-me., por vezes, quando já se encontrava sentado na sua secretária e eu estava a chegar. Era uma forma de cumprimento e de principiar o diálogo. . E tu, Cintra, que tens para hoje na tua critica de cinema?.... Gostava dos meus apontamentos, pedia-lhe opiniões e eu também apreciava muito os seus comentários. Encontrava-o sempre bem disposto, bem humorado. Era um homem terra terra: o oposto aos que gostam de andar a pavonear-se de lacinho e bem engravatados. De tal modo era esse seu desprendimento que chegava a parecer o típico português do campo. Isso avinhava-se-lhe na fisionomia: muito parecida ao homem comum. De carácter simples mas muito atento, pleno de confiança na sua formação e cultura..
Era crítico de cinema mas creio que não lhe interessava apenas o que se passava nas histórias dos filmes; pelo que depreendi, a sua curiosidade estendia-se também às vidas dos "actores "da rua. Era um excelente observador dos comportamentos e dos costumes. Fazia-lhe a radiografia e tirava-lhes a máscara. Não criticava ninguém mas reagia à sua maneira, com um certo sorriso meio matreiro e complacente, logo que sentisse ter logrado "despir" mais um mascarado. Via-se que não cultivava poses para mostrar que era um senhor intelectual Não precisava disso: estava de tal maneira talhado para a actividade que desempenhava, que dir-se-ia absorver a cultura cinematográfica, como a mesma naturalidade e à-vontade como as sanguessugas quando absorvem o sangue. Nada lhes escapava.
Várias vezes tomámos a bica juntos ao balcão do mesmo barzinho: "O Coice" Onde também se juntavam outros profissionais da mesma estação. E, naturalmente, a realizadora do programa - a Maria José - também ela, tal como Cintra, colaboradores do semanário Expresso. Foram bons tempos e bons programas. Mas, agora, mesmo depois de uma longa ausência de convívio e de trabalho, parece-me que o vazio, que já se instalou, ainda é bem maior, pois surge a inesperada notícia de que, afinal, o José Cintra Ferreira, já só poderá esperar por nós, quando também chegar a vez de nós partirmos. Por isso, embora já cheios de saudades da sua partida e expectantes de que possamos vir a viver mais umas quantas estações do ano, temos que nos conformar com as boas recordações que nos deixou: temos que nos render àquela sua expressão risonha e aberta, olhar miudinho sob as lentes graduadas, que, em cada palavra amiga, fazia sobressair ainda mais o seu rosto e o bigode, imagem que já nos era tão familiar, e nele tão natural mas que continuará a ser agora sem sombra de dúvida, a expressão e o rosto inesquecíveis: - na memória de todos quantos com ele trabalharam ou o conheceram e forjaram as melhores recordações e amizades
.Lembro-me de que, às vezes, quando não trazia o aparelho auditivo, era preciso falar-lhe um pouco mais alto ou aproximarmos-nos um pouco dele. A que então correspondia, invariavelmente, com um ainda mais expressivo e largo sorriso, talvez para nos compensar da pequena maçada. Espero que, no Além, ele possa escutar - sem qualquer recurso - a voz do silêncio! E até outras vozes que coabitem com a sua ou - mesmo separadas pela fronteira de outros mundos - conquanto se aproximem da sua e manifestem desejo em comunicar.
.
Meu Caro Cintra Ferreira:
Pois é assim, a vida:
Tu que viste inúmeros filmes , e aqueles não viste, pelo menos tiveste o cuidado de lhes conheceres a trama, os realizadores e o seus actores, terás reconhecido que as fitas de cinema retratam mais ou menos histórias vividas ou ficcionadas com principio, meio e fim: pois, como sabes, é mesmo assim a vida. Ninguém cá fica. E a tua chegou ao fim. Mais cedo que desejavas, pois, aos 68 anos, ainda não se é velho. Desde que não falte a saúde, ainda há muita vida pela frente. Mas a ti, ela faltou-te. - Segundo li nos jornais, bem lutaste ao longo de um ano contra a enfermidade, que dia a dia te minava e causava um grande sofrimento, mas, em vão, infelizmente.
Pois é assim, a vida:
Tu que viste inúmeros filmes , e aqueles não viste, pelo menos tiveste o cuidado de lhes conheceres a trama, os realizadores e o seus actores, terás reconhecido que as fitas de cinema retratam mais ou menos histórias vividas ou ficcionadas com principio, meio e fim: pois, como sabes, é mesmo assim a vida. Ninguém cá fica. E a tua chegou ao fim. Mais cedo que desejavas, pois, aos 68 anos, ainda não se é velho. Desde que não falte a saúde, ainda há muita vida pela frente. Mas a ti, ela faltou-te. - Segundo li nos jornais, bem lutaste ao longo de um ano contra a enfermidade, que dia a dia te minava e causava um grande sofrimento, mas, em vão, infelizmente.
Hoje o teu corpo vai para outra cidadela, a que chamam Alto de São João. Aparentemente, é um nome que nos remete para um lugar próximo dos céus. E eu espero bem que sim. Que, do teu corpo (ao ser cremado ou ao descer à terra, nesse instante de separação definitiva), se eleve nas alturas o teu espírito! - E que este se fixe eternamente no éter: pois, talvez, só lá nos infinitos espaços, te seria possível assistir àquilo a que, ao longo da tua vida, mais te apaixonaste: a sétima arte: aos maiores filmes dos Homens e da Terra; ao espectáculo dos seus prodígios, dos seus horrores e da sua beleza - Espero e faço votos ao Grande Arquitecto Universal para que o teu espírito prossiga e seja prendado no Além com tudo aquilo que aqui mais gostaste de fazer e até com o que ficou por realizar.
.
QUE LÁ NO OUTRO MUNDO O TEU ESPÍRITO ASSISTA AINDA A MUITOS FILMES POR ESTREAR, QUE A TUA ALMA ENCONTRE O REPOUSO, A PAZ E A GRANDE SERENIDADE NA BANCADA CELESTIAL ONDE TE PUDERES SENTAR - E, JÁ AGORA, SE TE SENTIRES TENTADO A COMUNICAR, NÃO HESITES: ESTAREI RECEPTIVO A SER TEU MENSAGEIRO E RECEPTOR. QUE É O QUE TENHO PROCURADO FAZER NAS MINHAS PEREGRINAÇÕES NOCTURNAS, COM OUTRAS ALMAS, ALGURES NOS ARREDORES DA MINHA ALDEIA, LÁ PELO SILÊNCIO MÍSTICO E ACOLHEDOR, DAQUELES NEGROS MAS SAGRADOS ERMOS E CANADAS.
.
.
Luís de Raziel.
Vidente Vara de Deus
Nenhum comentário:
Postar um comentário